Opinião

O tóxico naufrágio global

*Carlos Bocuhy

A decisão é trágica e lamentável não só para o meio ambiente, mas também porque expõe a incapacidade de planejamento naval para solução mais adequada.

O Brasil acaba de afundar na costa brasileira o porta-aviões São Paulo, ex-Foch da Marinha da França, em operação desde 1960.

O porta-aviões continha, como isolamento térmico, 9,6 toneladas de material tóxico (amianto) e estava recoberto por 644 toneladas de tintas contendo microplásticos.

Especula-se internacionalmente sobre sua contaminação nuclear. A participação do ex-Foch em experiências atômicas na Polinésia Francesa provocou forte reação popular na Turquia contra sua carcaça tóxica, que foi proibida de entrar no país para desmanche, obrigando seu retorno para o naufrágio consentido no Brasil.

Uma nota técnica do órgão ambiental responsável, o Ibama, afirmou que a operação de descarte no mar envolveria riscos ambientais graves. Mesmo considerando o afundamento uma decisão “trágica e lamentável”, em razão de questões operacionais de segurança, o Tribunal Federal da 5ª Região (Recife) negou os pedidos ajuizados pelo Ministério Público para sustar o afundamento.

A decisão é trágica e lamentável não só para o meio ambiente, mas também porque expõe a incapacidade de planejamento naval para solução mais adequada.

Depositar lixo tóxico no oceano fere convenções internacionais que protegem o ambiente marinho (Convenção de Londres, 1972), descrumpre a destinação adequada de resíduos (Convenção da Basiléia, 1992, e de Estocolmo, 2001), além de ferir o 14º item dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas: “Conservar e usar de forma sustentável os oceanos, mares e recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável”. O Brasil é signatário de todos esses compromissos internacionais.

A imagem ecológica do Brasil esgarçou-se no cenário internacional na gestão de Jair Bolsonaro. Essa fase de novo governo prometia um período de resgate, mas os primeiros sinais não têm sido convincentes.

No mês passado o presidente Lula anunciou, em visita à Argentina, financiamento com dinheiro público (BNDES) para gasoduto que utiliza técnica de extração de gás ambientalmente condenada (“fracking”), com impactos ambientais severos ao meio ambiente e à comunidade indígena Mapuche, da Patagônia.

Mesmo alertado por especialistas sobre os malefícios do “fracking”, o ministro da Economia Fernando Haddad, de forma incompreensível, afirmou que talvez não fosse necessário usar financiamento do BNDES, uma vez que já estava fazendo gestões para a obtenção de financiamento junto à iniciativa privada.

O governo de Jair Bolsonaro demonstrou ser mal-intencionado e incompetente, especialmente na área ambiental. Depois de viver anos de descalabro, conclui-se que a percepção social brasileira deva ter aumentado, no que se refere à necessidade urgente da boa governança ambiental.

O estado de ilegalidade ambiental generalizada no qual o Brasil foi lançado pelo governo anterior exigirá, no mínimo, retorno à normalidade constitucional. O caminho não será fácil.

O novo governo de Lula deverá demonstrar, em atos concretos, que suas propostas decorrem de decisões ambientalmente motivadas, devidamente fundamentadas em aspectos científicos e jurídicos – e consubstanciadas dentro da intersetorialidade governamental que seu governo prometeu, em conjunto com a ministra do Meio Ambiente Marina Silva.

Será preciso refletir sobre a motivação técnica das decisões, acatando pareceres ambientais do Ibama, ouvindo a sociedade civil e comunidade científica. Sobretudo, o governo deve agir com estrito respeito aos princípios constitucionais ecológicos, aos acordos e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário.

Em suma, para resgatar sua imagem, o Brasil deverá demonstrar, por meio de ações coerentes, que está verdadeiramente comprometido com a proteção do meio ambiente – e que a sociedade será respeitada quando demandar o governo, no exercício de seu papel primordial, crítico e cidadão, de exigência e controle social.

Para além da realidade nacional, o descarte inadequado do porta-aviões São Paulo revela um quadro global preocupante. Dados internacionais sobre gastos militares apontam cifra anual de 2 trilhões de dólares, valor superior a 10 trilhões de reais. Nada menos do que 2,2% do PIB global.

Estas cifras elevadíssimas representam maquinaria bélica de grande potencial destrutivo, mas sobretudo composta por materiais tóxicos e radiativos.

Há problemas evidentes relativos à obsolescência de equipamentos militares construídos na segunda metade do século passado, quando as pesquisas científicas e o regramento internacional eram insuficientes para orientar a forma ambientalmente correta para processos produtivos.

Em que pese os avanços tecnológicos e construtivos, a humanidade tem refletido pouco, em termos de debate público, sobre o que fará com o lixo proveniente da sanha militar armamentista herdada do século XX. Sem exceção e de acordo com requisitos ambientais, tudo deverá ser retrofitado, descomissionado, conteneirizado ou adequadamente descartado.

O volume das adequações é imenso. Restrições econômicas, descaso e falta de transparência impediram potências militares globais, como a antiga União Soviética, de realizar manutenções em seus equipamentos. Por exemplo, não se sabe ao certo qual o destino de alguns submarinos nucleares.

Há boatos de que a “solução econômica” encontrada foi o afundamento nas zonas abissais do Oceano Pacífico.

Restam, mundo afora, enormes passivos ambientais de estocagem de material bélico. Ao longo de décadas, matérias investigativas do jornal Washington Post trouxeram uma série de reportagens sobre armas químicas enterradas na Rússia. Uma das situações mais emblemáticas se refere à cidade de Leovidovka.

No meio de uma floresta estão enterradas, em lixão tóxico, milhares de bombas vintage da segunda guerra que permanecem recheadas de lewisita, gás venenoso de arsênio, e de yperita, gás mostarda de enxofre. O arsênio está envenenando o solo na região e tem sido detectado no sangue da população.

Na virada do século a Rússia declarou manter estocadas 40 mil toneladas de armas químicas, das quais 32 mil toneladas são de gases de efeito neurotóxico: Sarin, Soman e VX. O Sarin foi utilizado recentemente contra a população na guerra da Síria. O VX é considerado, pelas Nações Unidas, como arma de destruição em massa.

Recentemente o Departamento de Defesa dos Estados Unidos identificou 401 sites militares, em território americano, contaminados com ácido perfluoroctaróico (PFOA), substância tóxica por ingestão e inalação que causa danos oculares graves e apresenta efeitos carcinogênicos.

É obrigação legal e moral da sociedade humana proporcionar destinação adequada aos resíduos perigosos de uso militar ou não, quer sejam nucleares, químicos ou de revestimentos tóxicos como amianto. O desejável mesmo é não produzir, prevenindo para não remediar.

A França iniciou recentemente um processo de pedidos de desculpas à população local pelos 193 testes nucleares atmosféricos que realizou na Polinésia Francesa até 1974, nos quais o porta-aviões São Paulo, ex-Foch, esteve envolvido. Os casos de câncer aumentaram notadamente na região após este período.

A extensão nociva do universo das armas e seus impactos estão amplamente documentados. O potencial das estruturas militares geradoras do aquecimento global é comprovado. Por exemplo, as emissões de gases efeito estufa (GEE) do aparato e estrutura militar dos Estados Unidos representam 50% das emissões de GEE daquele país.

Cada vez fica mais evidente para a sociedade global que a prevenção desse estado de coisas é um estado de paz, de diálogo entre as nações e seu despojamento de gastos militares trilionários que apenas continuarão a gerar, além da destruição pelo uso, o inadministrável quadro tóxico remanescente da obsolescência armamentista.

Enquanto o São Paulo vai a pique em seu mergulho tóxico, continuam os embates com a parafernália bélica e tóxica entre Rússia e Ucrânia. É aterradora a perspectiva da escalada nuclear naquela região – e é sobretudo estarrecedor perceber a desmobilização e a falta de apelo global para que o conflito cesse.

Por fim, é preciso fazer as contas. Estima-se que 10% dos gastos militares globais anuais, US$ 200 bilhões, seriam suficientes para suprir todas as necessidades para a adaptação ao cenário das mudanças climáticas, desafio global de consequências dramáticas para a humanidade.

Como dizia Darwin, “não é o mais forte que sobrevive, nem o mais inteligente, mas o que melhor se adapta às mudanças”.

*Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).

Por: O Eco