Opinião

Como a crise climática se conecta à violência contra ambientalistas

Por Ana Valéria Araújo* e Cristina Orpheo**

A crise climática está intrinsecamente ligada a formas históricas de violência de gênero, raça e classe, herança de séculos de colonialismo e exploração. Neste contexto, os países ricos possuem uma dívida histórica com o Sul Global que não terá sua violência cessada apenas com medidas de mitigação. É preciso uma ação integral com uma abordagem muito mais ampla.

No centro desta crise estão justamente as periferias do mundo. Comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, ribeirinhas e moradores de periferias urbanas estão entre os mais afetados pelas mudanças climáticas. Comprovadamente, esses grupos são também os principais protetores dos biomas e dos recursos naturais. Nessas comunidades vivem homens e mulheres que dedicam suas vidas pela defesa do meio ambiente, muitas vezes se colocando em situações de extremo risco e ameaça em nome da proteção de seus territórios, comunidades e modos de vida.

Os fatos e os números são amplamente conhecidos: o Brasil ameaça e mata pessoas que defendem direitos humanos e ambientais. O mapeamento das organizações Terra de Direitos e Justiça Global publicado em junho de 2023 identificou 1.171 ocorrências de violência contra ativistas entre os anos de 2019 e 2022, sendo 169 assassinatos e 579 ameaças. Praticamente metade dos casos (47%) aconteceram na Amazônia Legal.

O relatório anual da Anistia Internacional apontou o Brasil como o quarto país do mundo com o maior número de assassinatos de defensores de direitos humanos e do meio ambiente. Entre alguns dos casos mais emblemáticos estão os assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, em junho de 2022; do indígena Paulo Paulino Guajajara, morto em 2019; e o recente assassinato da liderança quilombola e mãe de santo Maria Bernadete Pacífico, Mãe Bernadete, ocorrido em 2023 no Quilombo Pitanga dos Palmares, município de Simões Filho na Bahia.

A sociedade civil organizada é parte fundamental de uma democracia forte. Ao mesmo tempo, o ideal democrático não se realiza plenamente se ativistas que se organizam para defender direitos fundamentais estão sob ameaça à sua vida e integridade por desempenharem o seu papel no debate público. 

Somando os fatos, apesar do discurso verde do atual governo, a perspectiva para a diminuição da violência contra defensores ambientais no Brasil não é nada boa

Durante a COP 28 em 2023, após um período de negacionismo, o Brasil buscou se consolidar novamente como liderança climática. O governo reforçou o compromisso de eliminar o desmatamento até 2030 propondo um plano global para preservar as florestas. Porém, evita compromissos com a diminuição de investimentos em petróleo e gás, o que ficou evidente com a adesão à OPEP+, além da aprovação da exploração de novos blocos de petróleo e gás na Amazônia. 

Paralelamente, o país negocia a produção e exportação de hidrogênio verde para países da Europa com investimentos bilionários, a custo de uma grande e rápida expansão de parques eólicos e solares. Porém na prática, o que se observa não está nem perto de ser uma transição justa, popular e inclusiva, com o devido respeito às populações locais. Não são poucos os relatos de ameaças a comunidades e seus modos de vida tradicionais em meio a expansão das renováveis, especialmente no Nordeste.

Somando os fatos, apesar do discurso verde do atual governo, a perspectiva para a diminuição da violência contra defensores ambientais no Brasil não é nada boa.

Diante da atual realidade, organizações da filantropia nacional tem se articulado e trabalhado para encontrar caminhos que garantam a vida das pessoas defensoras de direitos humanos e ambientais. Fundos como o Fundo Brasil de Direitos Humanos e o Fundo Casa Socioambiental estabeleceram redes e laços profundos com instituições locais e regionais ao longo das últimas décadas para enfrentar este desafio complexo, especialmente na Amazônia e no Matopiba.

A filantropia comunitária e de justiça socioambiental, praticada por estes fundos, é realizada por meio de uma escuta ativa com defensores e organizações locais, para então realizar apoios emergenciais como resposta rápida a situações críticas, como risco de vida iminente. 

Além do suporte emergencial, os fundos participam de grupos de trabalho para debater a proteção das pessoas defensoras, compartilhando experiências e aprimorando estratégias para cessar a violência. Os pedidos de ajuda são rapidamente analisados e os recursos doados podem ser usados para retirar uma pessoa ameaçada temporariamente de seu território, custear assistências jurídica e psicológica, instalar equipamentos de segurança, entre outras medidas. 

Em setembro de 2023, durante o Mês da Filantropia que Transforma, uma iniciativa da Rede Comuá, o Fundo Brasil e o Fundo Casa realizaram um evento aberto a várias organizações do país para discutir o papel dos apoios emergenciais. A análise geral das organizações participantes ressalta a necessidade de avançar na construção de uma cultura de proteção integral, elaborada coletivamente pelas organizações locais e regionais, apoiada pela filantropia com uma abordagem sistêmica.

Os mecanismos emergenciais são cruciais, mas é essencial desenvolver estratégias mais amplas de proteção, considerando a complexidade das situações de violência e fragilidade dos territórios, que envolvem desde limitações das estruturas estatais a até mesmo a presença do crime organizado. Nesse cenário, as relações de confiança e as ações em rede são extremamente necessárias para uma atuação segura, tanto para as organizações como para os defensores e defensoras de direitos humanos e meio ambiente.

A violência contra ativistas, especialmente indígenas e negros, é uma realidade, que reflete a desigualdade do país. A proteção de indivíduos deve estar vinculada à proteção territorial, pois territórios de floresta e comunidades tradicionais estão entre os alvos principais. 

Diante das ameaças enfrentadas pelas pessoas defensoras, o Estado brasileiro assume um papel duplo e contraditório. É ele quem deve elaborar políticas públicas e executar ações de proteção – de ativistas e territórios. Mas o Estado é também perpetrador de violações ao não demarcar terras indígenas e quilombolas, prolongando e até mesmo potencializando conflitos e disputas por territórios e recursos naturais, entre outras omissões. Para manter a coerência de seu discurso internacional sobre proteção das florestas, é fundamental que o Estado faça a sua parte ampliando as políticas de proteção. 

Já do lado da sociedade civil, o combate à violência contra defensores de direitos humanos e ambientais exige abordagens criativas e contínuas. A filantropia deve facilitar o acesso aos recursos e fortalecer os laços com o ativismo de base, entendendo o processo de construção da ameaça como uma emergência. É crucial também pensar no pós-apoio emergencial, garantindo um retorno seguro das pessoas ameaçadas aos seus territórios, dando continuidade a suas vidas em segurança. 

Para mudar essa realidade é preciso ir além do olhar apenas para momentos críticos e entender que a continuidade dos apoios é fundamental. Não haverá solução para a crise climática global se as pessoas que dedicam suas vidas à proteção de direitos não forem valorizadas e protegidas. Este deve ser um compromisso da humanidade, para a humanidade e também com o planeta.

*Ana Valéria Araújo é superintendente do Fundo Brasil de Direitos Humanos. É advogada formada pela Faculdade de Direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), mestre em direito internacional pela American University e especializada em direitos indígenas e na defesa dos direitos socioambientais. É sócia-fundadora do ISA (Instituto Socioambiental). Foi diretora executiva da Rainforest Foundation US, em Nova Iorque (EUA).

**Cristina Orpheo é diretora executiva do Fundo Casa Socioambiental. É formada em Administração, com pós-graduação em gestão de projetos sociais, terceiro setor e gestão ambiental. Tem 20 anos de experiência em elaboração e gestão de projetos, gestão de recursos humanos, elaboração de projetos, planejamento estratégico e mobilização de recursos. Atua em Grantmaking e apoios a grupos comunitários de base.

Fonte: Nexo Jornal