A vida na Terra tem duas ameaças vitais: mudanças climáticas e ecocídio
*José Eustáquio Diniz Alves
Em quase 10 anos de colaboração no Portal EcoDebate, chego ao artigo de número mil. Durante esta década de reflexões sobre os temas de população, desenvolvimento e meio ambiente foi ficando claro que são enormes e diversificados os desafios para a redução da pobreza, para a promoção da equidade social em todas as suas formas e para garantir a justiça e a sustentabilidade ambiental. Porém, há que se destacar dois problemas urgentes – tipo espadas de Dâmocles – que se constituem em duas ameaças básicas à continuidade dos avanços civilizacionais e à biodiversidade da vida na Terra: as mudanças climáticas e o ecocídio.
Estas duas ameaças não brotaram do nada, mas, sim, foram sendo gestadas nos últimos 250 anos, desde o início da Revolução Industrial e Energética surgida na segunda metade do século XVIII. O gráfico acima mostra o impressionante crescimento demoeconômico ocorrido entre 1769 e 2019. O ano de 1769 é considerado um marco, pois foi quando James Watt patenteou a máquina a vapor, dando início ao uso em larga escala dos combustíveis fósseis (na época carvão mineral).
Em 250 anos, a economia global cresceu 134 vezes, a população mundial cresceu 9,2 vezes e a renda per capita cresceu 14,6 vezes. Este crescimento demoeconômico foi maior do que o de todo o período dos 200 mil anos anteriores, desde o surgimento do Homo sapiens. Mas todo o crescimento e enriquecimento humano ocorreu às custas do encolhimento e empobrecimento do meio ambiente. O conjunto das atividades antrópicas ultrapassou a capacidade de carga da Terra e a Pegada Ecológica da humanidade extrapolou a Biocapacidade do Planeta. A dívida do ser humano com a natureza cresce a cada dia e a degradação ambiental pode, no limite, destruir a base ecológica que sustenta a economia e a sobrevivência humana.
Artigo de Steffen et. al (2015), que atualizou a metodologia e os dados das fronteiras planetárias, mostrou que quatro das nove fronteiras já foram ultrapassadas: Mudanças climáticas; Perda da biodiversidade; Mudança no uso da terra e Fluxos biogeoquímicos (fósforo e nitrogênio). Duas delas, a Mudança climática e a Perda de biodiversidade, são o que os autores chamam de “limites fundamentais” e tem o potencial para conduzir o Sistema Terra a um novo estado que pode levar a civilização ao colapso. Vejamos as duas grandes ameaças que pairam sobre a civilização e a vida na Terra.
Mudanças climáticas e aquecimento global
O florescimento da civilização humana ocorreu nos últimos 12 mil anos e só foi possível devido à estabilidade climática prevalecente no Holoceno. Em 12 milênios, a variação climática ficou restrita à 0,5º Celsius, para cima ou para baixo, em relação à média do século XX. O gráfico abaixo mostra, contudo, que o mundo ruma para a temperatura mais alta dos últimos 5 milhões de anos. O Antropoceno está rompendo com o equilíbrio climático que houve no Holoceno e que possibilitou o florescimento da civilização humana.
Os últimos 5 anos (2014 a 2018) foram os mais quentes já registrados (2019, provavelmente, será o terceiro ano mais quente). Se o aquecimento global continuar no ritmo atual, a civilização estará no caminho de uma catástrofe. Como mostrou o jornalista David Wallace-Wells, a Terra pode se tornar um lugar inabitável ou terrivelmente inóspito.
Um estudo das universidades de New South Wales, na Austrália, e de Purdue, nos Estados Unidos, publicado na “Proceedings of the National Academy of Sciences”, em 2010, afirma um aumento de apenas 4ºC medidos por um termômetro úmido levaria metade da população mundial a enfrentar um calor equivalente a máximas registradas em poucos locais atualmente. Embora seja improvável que isso aconteça ainda neste século, é possível que já no próximo, várias regiões estejam sob calor intolerável para humanos e outros mamíferos. O estudo também ressalta que o calor já é uma das principais causas de morte por fenômenos naturais e que muitos acreditam, erroneamente, que a humanidade pode simplesmente se adaptar a temperaturas mais altas. A fisiologia humana não suporta temperaturas acima de 50º C. Ou seja, o aquecimento global pode deixar até metade do planeta inabitável.
Acompanhando o aumento médio da temperatura global, as ondas de calor ficaram, cada vez mais, frequentes. A duração, a frequência e a intensidade das mesmas provavelmente aumentarão na maioria das zonas terrestres ao longo deste século antecipando o “cenário de Mad Max” em diversas regiões do Planeta. Hoje em dia, já dá para notar o aumento da intensidade e da frequência de furacões, tufões e ciclones, além de tempestades e tornados que devastam o território e a qualidade de vida de milhões de pessoas.
A última vez que a temperatura ultrapassou os 2º C, no Planeta, foi no período Eemiano (há cerca de 120 mil anos) e provocou o aumento do nível dos oceanos em algo entre 5 e 9 metros. Tudo indica que a temperatura no século XXI vai ultrapassar os 2º C em relação ao período pré-industrial. Os prejuízos poderão ser incalculáveis tanto nas áreas urbanas, quanto rurais. A fome pode voltar a assustar grande parte da população mundial.
E o mais grave é que uma Terra inabitável e inóspita levará a autodestruição humana, mas também pode levar junto milhões de espécies que nada tem a ver com os erros egoísticos dos humanos que se julgam seres superiores e mais inteligentes. A humanidade pode estar rumando para o suicídio, podendo também gerar um ecocídio e um holocausto biológico de proporções épicas.
Ecocídio e a 6ª extinção em massa
Existe uma grande desigualdade entre as espécies da Terra, pois enquanto cresce a população humana, definham as populações não humanas. Segundo Ron Patterson (2014): “Há 10.000 anos os seres humanos e seus animais representavam menos de um décimo de um por cento da biomassa dos vertebrados da terra. Agora, eles são 97 por cento”. A jornalista Elizabeth Kolbert, no livro The Sixth Extinction, documenta o processo de extinção das espécies que ocorre com o avanço da civilização.
O Ecocídio é um crime que acontece contra as espécies animais e vegetais do Planeta. Esse crime se espalha no mundo em uma escala maciça e a cada dia fica pior. Exatamente por isto, cresce a consciência de que é preciso mudar o modelo de desenvolvimento que adota um padrão de produção e consumo danoso para o meio ambiente e que é responsável pelo aumento da destruição da vida na Terra. Para tanto, é preciso considerar o Ecocídio um crime contra a paz, um crime contra a natureza e um crime contra a humanidade e as futuras gerações. O site “Eradicating Ecocide” considera ser necessário a aprovação de uma lei internacional contra o Ecocídio para fazer com que os dirigentes de empresas e os chefes de Estado sejam legalmente responsáveis por proteger a Terra e as espécies não humanas.
O crime do especismo é equivalente aos crimes de racismo, sexismo, classismo, homofobismo, escravismo, etc. Recentemente foi criado um site para incentivar a mobilização contra a discriminação das espécies, definindo o dia 22 de agosto de 2015, como o “Dia mundial contra o Especismo”. A humanidade ocupa cada vez mais espaço no Planeta e tem prejudicado de forma danosa todas as demais formas de vida ecossistêmicas. O ser humano está reincidindo cotidianamente nos crimes do especismo e do ecocídio. Se a dinâmica demográfica e econômica continuar sufocando a dinâmica biológica e ecológica a civilização caminhará para o abismo e o suicídio. Porém, antes de o Antropoceno provocar uma extinção em massa da vida na Terra é preciso uma ação radical no sentido conter a ganância egoística, garantir a saúde do meio ambiente e a livre evolução da biodiversidade.
O último Relatório Planeta Vivo (2018) divulgado pelo Fundo Mundial para a Natureza (WWF), mostra que o avanço da produção e consumo da humanidade tem provocado uma degradação generalizada dos ecossistemas globais e gerado uma aniquilação da vida selvagem: as populações de vertebrados silvestres, como mamíferos, pássaros, peixes, répteis e anfíbios, sofreram uma redução de 60% entre 1970 e 2014.
Confirmando o impacto devastador das atividades humanas sobre a natureza, a Plataforma Intergovernamental para Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos (IPBES, na sigla em inglês), da ONU, mostrou que há 1 milhão de espécies ameaçadas de extinção. O relatório elaborado nos últimos três anos, e divulgado em maio de 2019, fez uma avaliação do ecossistema mundial, com base na análise de 15 mil materiais de referência.
O documento afirma que, embora a Terra tenha sofrido sempre com as ações dos seres humanos ao longo da história, nos últimos 50 anos os arranhões se tornaram cicatrizes profundas. A população mundial dobrou desde 1970, a economia global quadruplicou e o comércio internacional está dez vezes maior. Para alimentar, vestir e fornecer energia a este mundo em expansão, florestas foram derrubadas num ritmo surpreendente, especialmente em áreas tropicais. Entre 1980 e 2000, 100 milhões de hectares de floresta tropical foram perdidos, principalmente por causa da pecuária na América do Sul e plantações de palmeira de dendê no sudeste da Ásia.
A situação dos pântanos é ainda pior – apenas 13% dos que existiam em 1700 estavam conservados no ano 2000. O aumento dos plásticos nos oceanos é de tal ordem que em um futuro próximo haverá mais plásticos do que peixes nos oceanos. Portanto, toda a ação humana está matando mais espécies do que nunca. Cerca de 25% dos animais e plantas se encontram agora ameaçados.
As tendências globais em relação às populações de insetos não são conhecidas, mas foram registrados declínios acelerados em algumas regiões. O desaparecimento das abelhas, por exemplo, é não só um crime de ecocídio, mas também uma ameaça à própria alimentação humana, que depende dos polinizadores para viabilizar montantes crescentes de comida para a população mundial.
Ainda segundo o cientista Will Steffen (06/06/2019), membro sênior do Centro de Resiliência de Estocolmo, tratando do aumento temperatura média da Terra que ultrapassou 1º C, desde 1880, a taxa crescente em que as temperaturas estão subindo só agravam os problemas na biosfera. Ele diz que a humanidade está erodindo os próprios fundamentos da economia, afetando os meios de subsistência, a disponibilidade de alimentos, a segurança, a saúde e qualidade de vida em decorrência de “sistema econômico predatório” e completa: “Precisamos nos livrar dessa ideia de recursos, recursos, recursos. Precisamos ser regenerativos por projeto e é assim que o sistema econômico do século 21 deve funcionar”.
Artigo de Nafeez Ahmed (03/06/2019), resenha uma análise sobre as mudanças climáticas – escrita por um ex-executivo de empresa de combustíveis fósseis e apoiada pelo ex-chefe das forças armadas da Austrália – mostrando que a civilização humana pode entrar em colapso nas próximas décadas devido à mudança climática. A análise, publicada pelo Centro Nacional Breakthrough para a Restauração do Clima, um think-tank em Melbourne, Austrália, descreve as mudanças climáticas como “uma ameaça existencial de médio prazo à civilização humana”. O documento argumenta que os “resultados extremamente sérios” das ameaças à segurança, relacionadas ao clima são, com frequência, muito mais prováveis do que o convencionalmente assumido, mas quase impossível de quantificar porque “estão fora da experiência humana dos últimos mil anos”. Na atual trajetória, adverte o relatório, “os sistemas planetário e humano devem atingir um ‘ponto de não retorno’ até meados do século, no qual a perspectiva de uma Terra praticamente inabitável leva ao colapso das nações e da ordem internacional.
Portanto, o avanço do progresso humano vai esbarrar em duas barreiras nas próximas décadas, que são as mudanças climáticas e a perda de biodiversidade. A ideia utópica de uma harmonia entre o crescimento da população e o desenvolvimento está se transformando em uma distopia, pois o desenvolvimento sustentável virou um oximoro.
Até 2100 a população mundial deve atingir mais de 11 bilhões de habitantes. Se o “sistema econômico hegemônico” (modelo “Extrai-Produz-Descarta” com desigualdade social) conseguir incluir todas estas pessoas no padrão médio de consumo a demanda por recursos naturais será enorme e o impacto sobre a degradação do meio ambiente pode ser irreversível. Se a maioria destas pessoas ficarem de fora das “benesses” do capitalismo, haverá uma grande revolta social e uma grande disputa entre os povos do mundo. O fato é que vivemos numa sociedade de risco que gera negatividades crescentes.
Assim como o desenvolvimento sustentável se tornou uma contradição em termos, o tripé da sustentabilidade virou um trilema, segundo Martine e Alves (2015). Uma “Terra estufa” e com menos biodiversidade será não só um lugar mais triste para se habitar, como poderá ser a Era de um colapso civilizacional e de uma apocalipse ambiental.
*José Eustáquio Diniz Alves é Doutor em demografia
Fonte: EcoDebate