Dizem que você é o que você come… então quem é você?
*Nurit Bensusan
Já foi o tempo, onde se podia comer inocentemente. Talvez, pensando bem, esse tempo nem tenha existido… Mas de qualquer forma, a inocência, se esteve um dia presente, foi sendo perdida aos poucos… Começou, possivelmente, com as pessoas, principalmente, as mulheres se sentindo compelidas a seguir um padrão estético inapropriado para a maioria delas. Comer passou a ser uma conta de calorias acompanhada de olhares de reprovação das outras mulheres e de muitos homens.
Hoje, as pessoas decidem o que vão comer em função de inúmeros fatores. Parte deles tem relação com aspectos nutricionais, como a quantidade de calorias, de sódio e de carboidratos ou a presença de glúten e de lactose. Mas existe uma outra dimensão da alimentação. Uma dimensão relacionada com aspectos socioambientais que estão, por sua vez, ligados a escolhas econômicas e políticas. Ou seja, comer passou a ser um ato político.
Por exemplo, escolher comer atum, sabendo que é uma espécie ameaçada de extinção é uma opção com consequências. Continuar comendo bacalhau, ignorando sua procedência, sabendo que esse peixe está desaparecendo de muitos lugares, tem um significado. Aqui estamos falando de situações claras: evitar espécies ameaçadas de extinção ou provenientes de lugares onde as espécies estão sumindo, isso não deveria ser tão difícil, nem tão raro, mas é.
Há situações um pouco mais complexas, como por exemplo, o caso do consumo de camarão. A maior parte dos camarões servidos hoje nos restaurantes do mundo inteiro vêm de uma indústria conhecida como “aquicultura”. Nesse caso, mais especificamente de um de seus ramos, a “carcinicultura” – criação de camarões -, que já aportou também, e desastrosamente, em terras brasileiras. Apesar de, à primeira vista, parecer uma boa ideia produzir camarões, ao invés de simplesmente coletá-los, há muitos problemas nessa atividade… Entre os mais sérios, estão o uso excessivo de pesticidas e antibióticos nos próprios tanques de camarão, as devastadoras doenças virais espalhadas entre as granjas de camarão e as perdas significativas de importantes ambientes marinhos litorâneos, como manguezais, bancos de lama e bancos salinos. Essas perdas prejudicam o crescimento e o desenvolvimento dos organismos marinhos, provocando significativa diminuição dos estoques pesqueiros naturais, além de reduzirem os ambientes propícios às aves migratórias e de comprometerem os meios de vida tradicionais de comunidades litorâneas. Saber de tudo isso e simplesmente comer camarão, sem checar de onde vem o bicho, certamente quer dizer algo sobre quem você é.
No exame das escolhas gastronômicas como atos políticos, que dizem muito sobre o sujeito que se alimenta, talvez o mais significativo deles seja a opção de comer carne bovina, ou de comer muita carne bovina. Nos últimos 40 anos, 763 mil km² da Floresta Amazônica desapareceram, isso quer dizer duas vezes a área da Alemanha, e quer dizer também que 42 bilhões de árvores sumiram. Tradução: a cada minuto 2 mil árvores são derrubadas, totalizando 3 milhões por dia. Cerca de 80% desse desmatamento é causado pela pecuária. Ou seja, você pode não comer açaí, nem gostar de castanha do Pará, mas se você come bois e vacas, você devora a Amazônia e, de quebra, abocanha o Cerrado.
Além disso, as áreas usadas para a agricultura no Brasil, boa parte delas dedicada à produção de soja, também tem relação com o consumo de carne bovina e de frangos. Mais de 80% da soja produzida na Amazônia acaba como ração destinada a alimentar rebanhos e a avicultura na Europa. Tradução: aquelas lindas vaquinhas holandesas também se alimentam da nossa Amazônia.
Na tentativa de responder quem somos nós, uma vez que somos o que comemos e que comer é um ato político, há duas linhas de argumentação, entre outras, que em geral são aventadas para tentar demonstrar que somos bacaninhas, mesmo devorando a Amazônia, tomando sopa de barbatana de tubarão, comendo os últimos caranguejos do litoral cearense e não dando bola para a procedência do que comemos.
A primeira linha, também conhecida como “puxa, assim não dá para comer nada!” concentra os argumentos daqueles que acham que pelo fato de devermos evitar um punhado de alimentos e de devermos optar por comer uma quantidade menor de carne, nossa liberdade alimentar está em xeque. Em geral, também argumentam que dá trabalho saber que espécies estão ameaçadas, o que se pode comer, de onde vem os alimentos… Provavelmente, dá algum trabalho sim, mas atitudes simples como comer menos carne podem ter um grande impacto se tiverem muitos adeptos.
Isso me conduz diretamente a segunda linha de argumentação, aquela focada na ideia de que se uma pessoa comer menos carne, evitar o bacalhau norueguês e não comer atum não vai fazer nenhuma diferença no mundo. Ou seja, uma andorinha não faz verão. Não há dúvida, quanto mais andorinhas melhor, mas mesmo que uma andorinha não faça verão, ela segue sendo uma andorinha. Assim, mesmo que não mudemos o mundo com nossas atitudes alimentares, devemos seguir mesmo que seja por um imperativo ético individual, para seguirmos sendo indivíduos que se importam com as consequências do que fazem, mesmo que não seja verão…
*Nurit Bensusan é bióloga
Fonte: Planeta Bárbaro