Agência Nacional de Águas: desvirtuamento, reconstrução e novos riscos
*Luiz Antonio T. Grassi
No final dos anos 1980, por iniciativa de profissionais do Departamento Nacional de Águas e Energia Elétrica – seção RS, da Corsan, da Metroplan, da Fepam e do economista Eugenio Canepa, da Cientec, começou a ser pensado e depois implantado, no Rio Grande do Sul, um sistema de gestão dos recursos hídricos.
Muito apropriadamente, o processo foi iniciado experimentalmente através de dois comitês, reunindo representação dos governos estadual e municipal com integrantes da sociedade civil. Os Comitês das Bacias Hidrográficas dos rios do Sinos e do Gravataí foram os embriões, não só de uma rede de organismos colegiados no Rio Grande do Sul e em todo o País, mas também dos sistemas nacional e estadual de gestão das águas, entendida como cuidado público da conservação, da recuperação e dos usos compartilhados de rios e águas subterrâneas. A experiência gaúcha conectou-se e intercambiou com os estudos, os debates e as iniciativas que havia em outros estados e em plano federal.
Fundou-se assim, uma doutrina gerencial que se alimentou, também com conhecimento de experiências de outros países. O modelo francês foi considerado o mais bem sucedido e aproveitado, com as necessárias adaptações para a realidade brasileira.
Fundamental nessa doutrina e na construção desse sistema de gestão foi a adoção do caráter participativo, em que entes – públicos e privados – responsáveis pelos mais diversos usos das águas da natureza, tivessem a oportunidade e os instrumentos para explicitar seus interesses, defendendo-os e submetendo-os a decisões coletivas, dentro dos moldes legais, da supervisão dos organismos públicos adequados, e de planejamento construído em comum. Em 1994, a Lei Estadual das Águas estabelecia o quadro legal do Sistema e processava-se a criação de todos os demais Comitês de Gerenciamento de Bacias Hidrográficas no Rio Grande do Sul, além dos já existentes.
Paralelamente à construção do Sistema Estadual de Recursos Hídricos (importante, por sinal, para a criação da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, no governo Olívio Dutra), também se processava a formatação do Sistema Nacional. Em 1997, foi sancionada a Lei Federal das Águas (LF 9433/07), instituindo a Política Nacional dos Recursos Hídricos com o respectivo Sistema de gestão (que, aliás, regulamentava o inciso XIX do art. 21 da Constituição Federal).
Nessa lei era prevista uma Agência Nacional de Águas integrando o Sistema. A mesma passou a ter existência quando foi sancionada a Lei 9.984, de 17 de julho de 2000. A ANA era criada como entidade federal de implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e de coordenação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
Fica muito claro que a ANA não foi criada como uma “agência de regulação” (como a ANATEL, a ANEEL etc.), pois essas são criadas para o controle de um tipo determinado de serviço, seja público ou privado, mas cuja prestação envolve qualquer tipo de interesse social. Ora, a gestão dos recursos hídricos não é um serviço e sim a concretização de uma política pública, que envolve cuidados ambientais, interesses econômicos e direitos sociais. Na lei de 2000, o exame dos itens que tratam da competência da ANA não indica nada que se assemelhe a uma função de regulação de um serviço.
Infelizmente, sempre perpassou por muitas mentes e meios a confusão, parcialmente causada pelo nome Agência, de que a ANA devia ser uma agência de regulação. Devemos lembrar que o final dos anos 1990, no plano federal, foi o auge da adoção do modelo neoliberal em que a administração pública privatizava tudo o que fosse possível, criando as tais “agências de regulação”, no mais das vezes sequestradas pelos mesmos interesses privados que prestam os serviços.
Enquanto isso, paralelamente, processava-se, lenta e em meio a muitas controvérsias, a criação de um sistema que articulasse, em plano nacional, serviços de saneamento básico (entendido como abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, disposição de resíduos sólidos e drenagem urbana). Ora, esses serviços (também geralmente envoltos em confusões terminológicas), após vários anos de discussão por entidades e profissionais envolvidos, foram regulamentados pela Lei nº 11 445/ 2007 – Marco Regulatório do Saneamento Básico. A mesma oportunizava a criação (ou aproveitamento) de entidades de regulação, exigindo apenas que fossem de natureza autárquica e autônomas, administrativa e financeiramente
Havia, nessa lei, uma referência à ANA, determinando que os padrões e normas para a prestação dos serviços deviam observar as normas de referência editadas pela ANA. Essa determinação era decorrente do fato de que os serviços de saneamento básico são diretamente usuários dos mananciais (e legalmente, usos prioritários) seja para suprimento da água, seja como destinação dos esgotos tratados (ou não).
Em 2020, ocorre, então, o grande desvirtuamento da ANA. O Novo Marco Legal do Saneamento transforma a mesma em Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, deslocando-a para o Ministério do Desenvolvimento Regional e atribuindo-lhe funções explicitamente regulatórias.
Observe-se que este Novo Marco Legal tem sido considerado como uma abertura de possibilidades para a privatização dos serviços de água e esgoto, como o caso da Corsan.
Os setores interessados na exploração do saneamento como empreendimento, tendo como objeto principal o lucro e não a saúde pública, ficavam bem satisfeitos em ter a ANA incluída no quadro das agências reguladoras de cunho neoliberal, com o horizonte sempre possível da relação incestuosa entre regulados e reguladores.
Ao contrário, a comunidade técnico-científica interessada na gestão dos recursos hídricos lamentava esse desvirtuamento da ANA e o prejuízo no cumprimento de sua missão de organismo técnico vital para o respectivo Sistema.
Finalmente, chegamos a alvorada de um novo governo. Para surpresa de muitos, no primeiro dia, entre as medidas de reconstrução, a Medida Provisória 1154/2023, ao recuperar o Ministério do Meio Ambiente (acrescentando-lhe “…e Mudança do Clima”) volta à Lei 9984/2000, recuperando a identidade e as funções originais da ANA.
Em seguida, o regozijo é abalado pela reação nervosa do mercado e de investidores. A mídia dá conta de que a medida criou insegurança no setor e incerteza no mercado… Os principais meios de comunicação imediatamente dão voz aos críticos dessa verdadeira recuperação da ANA. E a Secretaria Executiva da Casa Civil, Miriam Belchior, segundo o Yahoo Notícias, teria dito: “… O certo era ter mantido na ANA (como reguladora do tema) porque nós vamos fazer uma discussão sobre o marco do saneamento com o setor privado, com as empresas estaduais de saneamento e com todo o setor para verificar que ajustes o modelo precisa”… Mesmo analistas identificados com o governo (Carta Capital) limitam-se a criticar as posições e o comportamento dos atuais dirigentes da ANA sem mencionar a grande recuperação que representa a Medida Provisória.
Estamos em momento de grandes definições. No caso da ANA, a reação esperada dos operadores privados, dos investidores interessados no saneamento como negócio já era esperada.
E como vai se comportar a nova equipe governamental? Haverá um recuo e a manutenção do desvirtuamento da Agência Nacional de Águas?
A ministra Marina Silva estará atenta a essa investida anti-ambiental?
O Sistema Nacional de Recursos Hídricos continuará desmontado ou será reconstruído no Governo de União e Reconstrução?
*Luiz Antonio T. Grassi é engenheiro Civil e ex-presidente do Comitê Lago Guaíba.
Fonte: Brasil de Fato