Opinião

Os rios morrem de sede

*Paulo R. Haddad

No relatório de Conjuntura de Recursos Hídricos do Brasil de 2018, elaborado pela Agência Nacional de Águas (ANA), destaca-se uma análise da crise hídrica observada pelos indicadores de 2017. Dos 5.570 municípios brasileiros, 2.560 (48%) decretaram situação de emergência ou estado de calamidade pública devido a cheias pelo menos uma vez de 2003 a 2017, enquanto 2.839 (51%), por causa da seca ou estiagem no mesmo período. Foram cerca de 38 milhões de pessoas afetadas por secas e estiagem, quase 13 vezes mais que por cheias.

Como o Brasil dispõe de uma rede hidrográfica com rios extensos e volumosos (bacia Amazônica, bacia do Araguaia-Tocantins, bacia do São Francisco, bacia Platina), a maioria dos brasileiros tem a impressão de que a água não é um bem escasso no país e, portanto, pode ser tratada como um bem não econômico de livre acesso. Nesse contexto, os rios do Brasil estão passíveis de vivenciar “a tragédia dos bens comuns”, definida por Garett Hardin como uma situação em que indivíduos, agindo de acordo com seus próprios interesses, comportam-se contrariamente aos legítimos interesses de uma comunidade, esgotando algum recurso comum.

Utilizam os rios como se fossem um estoque inesgotável de um bem livre, fundamental direta ou indiretamente para o seu bem-estar, ou como um lixão onde depositam recorrentemente os resíduos ou dejetos de seus hábitos de consumo ou de seus padrões de produção. Pouco se preocupam com a deterioração da qualidade das águas pela falta de saneamento básico ou pela poluição das atividades produtivas; ou com os impactos degradantes das mudanças climáticas sobre os recursos hídricos; ou até mesmo que a crise hídrica nas grandes metrópoles ou no semiárido acabe por penalizar os mais pobres e miseráveis, que não dispõem de recursos para superar os problemas de desabastecimento e de saneamento.

Estudo da FEA/USP mostrou que, com o aquecimento global, no Nordeste as chuvas tenderiam a diminuir de 2 mm a 2,5 mm/dia até 2.100 mm, causando graves perdas agrícolas em todos os Estados da região. O declínio da precipitação afetaria a vazão de rios em bacias do Nordeste importantes para a geração de energia, como a do Parnaíba e a do Atlântico Leste, com redução de vazões de até 90% entre 2070 e 2100. Na Amazônia, o aquecimento poderia chegar a 7ºC em 2100, gerando um processo de savanização da floresta. E a oferta de águas de superfície para quase todas as regiões do Brasil indica tendência declinante, com substancial diminuição dos excedentes de águas.

O título de nosso artigo é uma lembrança do livro de Wander Piroli “Os Rios Morrem de Sede”, pioneiro na apresentação didática e realista dos temas ecológicos para crianças. Basicamente, o premiado jornalista e escritor conta a história de um homem que leva o seu filho para pescar no rio das Velhas, como fazia na sua infância, mas encontra um meio ambiente degradado e as águas do rio sujas e de cor marrom, tendo o curso d’água se tornado um verdadeiro esgoto, segundo um canoeiro que ali pescava.

Benjamin Franklin já dizia em 1746: quando o poço seca, é que sabemos o valor da água. O livro de Wander Piroli é de 1976. São pródromos da crise hídrica cujas vozes de alerta parecem desvanecer no tempo de lideranças políticas e comunitárias supérfluas.

*Paulo R. Haddad é professor emérito da UFMG

Fonte: O Tempo