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Opinião

Além do carisma: baratas, aranhas, cobras e outros bichos sob novos olhares

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* DNH (Grupo de Estudos e Pesquisa em Dimensões Humanas da Natureza)

O carisma de uma espécie não é talhado em pedra. Ele está propenso a ser criado ou alterado por meio de ferramentas de marketing e mudanças culturais.

Acredita-se que aqueles que atuam na conservação da natureza tendem a compartilhar do pensamento de Umberto Eco, em História da Feiura (2007): “na Natureza não há feiura”. Os conservacionistas costumam concordar que o termo feio não se opõe ao belo, sendo a percepção de “feio” mais um fenômeno social do que psicologicamente construído.

Logo, depende do contexto (tempo e espaço) das pessoas, dos arranjos e relações humanas, e do quão permeável são os aspectos externos que podem influenciar conceitos. John Green em seu livro The Anthropocene reviewed (2021) declarou que a beleza é muito de como se vê aquilo que se olha.

Beleza ou feiura, além de polarizadores, são apenas um dos critérios que compõem o conceito de carisma. Já trouxemos esta temática em fevereiro de 2021, com o artigo “Espécies carismáticas: muito além da fama e beleza”. E o assunto é tão instigante que merece mais uma rodada de reflexões.

Neste artigo, trazemos reflexões sobre as espécies ditas “não carismáticas”: aquelas espécies feias (a certos olhos) como, por exemplo, os morcegos ou os gambás; as que não tem apelo comercial, a exemplo dos pequenos roedores e marsupiais de florestas tropicais; os ratos, escorpiões, mosquitos e os pombos como espécies consideradas pragas urbanas; ou ainda as serpentes e as aranhas, com algumas espécies capazes de causar acidentes fatais devido ao seu veneno.

Mas será que rotulando as espécies dessa maneira, não as preterimos em relação às demais, desconsideramos suas funções e o impacto dessa denominação sobre seus ambientes? Percebemos que discutir o carisma da flora, da fauna, ou de um ecossistema é um desafio!

Que a busca por identificar, descrever, entender, medir e se possível prever as dimensões humanas da conservação do que confortavelmente chamamos de “espécies não carismáticas” é mexer com nossos próprios preconceitos e paradigmas.

O não carisma de uma espécie depende fortemente da nossa percepção sobre ela e da sua relação conosco. Pense numa barata, por exemplo. Pode ser que você nem a ache feia, ou que não tenha pavor de encontrar uma no seu quarto, mas é bem possível que você ainda pense no esgoto do qual ela eventualmente saiu e como você não a quer na sua cozinha.

A barata que encontramos nas cidades é um exemplo icônico de um animal não carismático. Descrição que, em parte devido à fama das baratas cosmopolitas, geralmente se estende a outras espécies da mesma ordem (Blattodea) mesmo que elas não tenham nada a ver com a história. Em outros casos, essa classificação como não carismática não tem tanto consenso.

Especialmente em casos nos quais o apreço dado à espécie pelas pessoas que dividem espaço com ela não é o mesmo de pessoas que não estão na mesma realidade (como alguns casos de mamíferos predadores como lobos, coiotes e onças, que são espécies carismáticas para alguns, mas não são tão bem quistas pelos fazendeiros que têm prejuízo por causa delas). Ou em casos nos quais as opiniões são um pouco mais divididas, mesmo entre pessoas que nunca observaram o animal de perto.

Baleias, por exemplo, até o século XVII, eram consideradas como grandes monstros marinhos e associadas a maus agouros, terremotos e naufrágios na cultura ocidental. Só por volta de 1970, quando mais informações sobre o seu comportamento e cognição começaram a se tornar mais conhecidas e seu uso como recurso se tornou menos popular, elas começaram a ser vistas de outra forma. Hoje, há locais que atrelam valor turístico ao avistamento desses grandes mamíferos aquáticos, trazendo renda para a população local.

O carisma de uma espécie não é talhado em pedra. Ele está propenso a ser criado ou alterado por meio de ferramentas de marketing, mudanças culturais, aumento do conhecimento que adquirimos sobre comportamento, função ecológica, entre outros.

São vários os exemplos de animais que há algum tempo não eram considerados tão simpáticos assim e que ao longo do tempo foram se encaixando na categoria dos carismáticos, através da atenção recebida pela mídia e de esforços posteriores para alterar a percepção social negativa sobre eles.

Um caso clássico do cinema mundial, lançado em 1975, é a história fictícia de um tubarão branco que atacava intencional e incansavelmente banhistas nos Estados Unidos no filme ‘Tubarão’. Este filme ilustra a forma como os tubarões foram representados nas mídias no passado (e muitas vezes ainda são).

Notícias de ataques de tubarões “agressivos” se tornaram parte da narrativa associada a estas espécies, exacerbando o sentimento de medo das pessoas por este grupo de peixes. Somente no início dos anos 2000 essa visão ‘menos carismática’ do grupo começou a mudar, atrelada ao reconhecimento da importância dos tubarões para o ecossistema marinho e ao começo da valorização do turismo baseado em seu avistamento. Hoje, tubarões podem ser considerados espécies carismáticas (mesmo que isso não seja consensual) e protagonizam projetos de conservação.

Esforços têm sido desenvolvidos no mundo do cinema para modificar a percepção negativa em relação a grupos de animais como as aranhas (a exemplo de Lucas, ‘The spider’, uma série de vídeos curtos no youtube) e as cobras. Mas, apesar dessas tentativas para mudança de percepção social sobre alguns animais, ainda são vastos os exemplos de associações destes com o “mal”, o feio ou o nojento.

As cobras, as aranhas e os insetos (como baratas, gafanhotos e formigas) muitas vezes são retratados como invasores ou monstros em filmes e desenhos, ou ainda associados ao medo e a mal presságios. É preciso considerar que, talvez, estas representações negativas de animais não carismáticos reforcem medos associados à nossa história evolutiva.

O medo de cobras, por exemplo, parece ir além da construção social do não carisma. Quando expostas a uma paisagem, crianças e filhotes de macacos que nunca viram cobras são mais rápidos em detectá-las do que outros animais considerados menos ameaçadores.

Além disso, há indícios de que o medo de cobras, quando condicionado junto ao medo por objetos neutros e objetos ameaçadores modernos (como armas de fogo), persiste por mais tempo. Mas, mesmo que o medo desses animais seja parte de nosso processo evolutivo, isso não apaga as funções ecológicas ou o valor dessas espécies.

A falta de conhecimento sobre as espécies menos destacadas pelos programas de conservação e pelos documentários e reportagens midiáticas é acentuada pela falta do reconhecimento de seu valor intrínseco (essencial pelo simples fato de existir). Fato que tem sido demonstrado pelas inúmeras mortes propositais de animais como serpentes, sapos, aranhas, morcegos, gambás e até mesmo lagartixas.

Um estudo realizado paralelamente em rodovias movimentadas e outras com pouco fluxo, utilizando modelos realistas, demonstrou que serpentes e aracnídeos foram significativamente mais atropelados do que galhos e pintinhos posicionados propositalmente nas estradas. Os autores concluíram que os atropelamentos foram propositais e que campanhas de educação para a conservação dessas espécies (aranhas e serpentes) são necessárias para que haja mudança de comportamento dos motoristas nas estradas.

Isso nos leva à importância da educação nas escolas e em espaços não formais de ensino (como zoológicos, aquários e museus), assim como do papel da mídia para evitar a divulgação de informações equivocadas, ambíguas ou distorcidas. Nestes espaços, é importante que os exemplos e informações sobre a biodiversidade, além de não serem voltados apenas para realidade de países longínquos, reconheçam também o papel de espécies ‘não carismáticas’ no ecossistema (por exemplo, mostrar que sapos e lagartixas participam do controle de populações de moscas, e que cobras ajudam no controle de populações de pragas rurais e urbanas como os ratos) e que tragam aspectos curiosos sobre estas espécies, agregando a elas elementos que possam contribuir para o aumento da simpatia que estes animais podem despertar nos humanos.

Outros caminhos incluem agregar mais valor (nem sempre monetário) a estas espécies, reduzir conflitos com espécies consideradas pragas, criar oportunidades atreladas a espécies não carismáticas e, junto a tudo isso, reconhecer que para a conservação de um ecossistema ser efetiva não podemos olhar apenas para um grupo carismático de seres vivos.

Esperamos que essas espécies ditas “feias”, “sujas” ou “más” conquistem seus espaços por méritos muito mais importantes do que os ditados por um padrão – tão sujeito à geografia e ao tempo como tudo o mais. E que as espécies popularmente não belas sejam vistas com outros olhos. Afinal, o valor intrínseco é um direito fundamental que não deve ser negociado.

* DNH, é um grupo de pesquisa com uma abordagem transdisciplinar, dedica-se à discussão e análise de estratégias de conservação, manejo de conflitos socioambientais, uso e acesso aos recursos naturais.

Fonte: O Eco