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Opinião

Degradação dos solos, crise climática, pandemia, guerra na Ucrânia e a catástrofe da fome

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* José Eustáquio Diniz Alves
A forma como atualmente administramos e usamos os recursos naturais está ameaçando a saúde e a sobrevivência contínua de muitas espécies na Terra, incluindo a nossa. – “A floresta precede os povos. E o deserto os segue”, François-René Chateaubriand (1768-1848).

Está cada vez mais difícil e caro produzir alimentos no mundo, pois é impossível continuar aumentando o banquete para um número cada vez maior de comensais.

A pandemia da covid-19 e a guerra na Ucrânia são fatores conjunturais, mas há fatores que dificultam a produção de bens de subsistência e são estruturais, tais como a degradação dos solos, o pico do petróleo e a crise ambiental e climática.

É ilusão achar que há grãos suficientes no mundo para alimentar a crescente população global. Os custos aumentam e a oferta não acompanha a demanda. A época da comida barata acabou.

Os tecnófilos cornucopianos costumam justificar o aumento do preço dos alimentos com base nos fatores conjunturais e defendem a ideia de que a “engenhosidade humana” é sempre capaz de encontrar soluções para aumentar a produção e a oferta de alimentos.

Contudo, o índice de preços da FAO que apresentou o menor valor na última década do século XX, mudou a tendência e tem registrado aumentos sucessivos ao longo do século XXI.

A produção de alimentos aumentou muito nas últimas décadas, mas às custas da degradação dos solos e do aumento da poluição da terra, das águas e do ar. E o pior, os danos humanos à terra do planeta estão se acelerando, com até 40% dos solos agora classificados como degradados, enquanto metade da população mundial está sofrendo os impactos.

O relatório da ONU, “The Global Land Outlook” (UNCCD, 27/04/2022), registra que 52% do total das terras agricultáveis estão degradas e, globalmente, os sistemas alimentares são responsáveis ?? por 70% do uso da água doce, 80% do desmatamento, 29% das emissões de gases de efeito estufa, 70% da perda de biodiversidade terrestre e 50% da perda de biodiversidade marinha.

O relatório mostra que os recursos da terra – solo, água e biodiversidade – fornecem a base para a riqueza das sociedades e das economias. Eles atendem às crescentes necessidades e demandas por comida, água, combustível e outras matérias-primas que moldam os meios de subsistência e estilos de vida da população mundial.

No entanto, a forma como atualmente administramos e usamos esses recursos naturais está ameaçando a saúde e a sobrevivência contínua de muitas espécies na Terra, incluindo a nossa, pois o ecocídio é também um suicídio.

Cerca de US$ 44 trilhões de produção econômica – mais da metade do PIB anual global – é moderada ou altamente dependente do capital natural. O fracasso agrícola será também um fracasso de toda a economia global.

A UNCCD lembra que a comunidade internacional se comprometeu a restaurar um bilhão de hectares de terras degradadas até 2030. Este é apenas o começo.

Mas ressalta que o objetivo é preservar os serviços de suporte à vida da natureza e salvaguardar a produtividade dos recursos da terra para as próximas gerações, reduzir os riscos e impactos de desastres e pandemias, e aumentar a resiliência do ecossistema e da comunidade em diante de tensões ambientais iminentes e choques climáticos.

A restauração é uma solução comprovada e econômica para ajudar a reverter as mudanças climáticas e perda de biodiversidade causada pelo rápido esgotamento de nossos estoques finitos de capital natural. A agenda de restauração de terras é uma estratégia de múltiplos benefícios.

Por exemplo, as práticas regenerativas de uso da terra, empregadas para a saúde do solo ou a recarga das águas subterrâneas, também aumentam a capacidade de lidar com secas, inundações, incêndios florestais e tempestades de areia e poeira.

Diante de toda esta situação, não é surpresa constatar que a comida esteja cada vez mais cara. De fato, o Índice de Preços dos Alimentos (FFPI) da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) que vinha subindo, apresentando valor de 98,1 pontos em 2020 e 125,7 pontos em 2021.

Mas em 2022 os valores extrapolaram e o FFPI ficou em 135,6 pontos em janeiro, 141,1 pontos em fevereiro, o recorde de 159,7 pontos em março e cerca de 158 pontos em abril e maio. A média dos 5 primeiros meses de 2022 apresenta o maior valor em 100 anos, sendo superado apenas pelo preço dos alimentos na época da 1ª Guerra Mundial e da pandemia da Influenza, no quinquênio 1915-1920.

O gráfico abaixo mostra que os recordes anteriores de alta do FFPI aconteceram em 1974 e 1975 (quando houve o primeiro choque do petróleo) e a década de 1971-80 foi a que teve a maior média decenal da série, com 110,2 pontos. Nas décadas de 1980 e 1990 os preços dos alimentos caíram e marcaram os menores valores do século XX.

Mas a comida voltou a ficar mais cara no século XXI e está batendo recorde de alta em função de 5 acontecimentos: pandemia da covid-19, guerra da Ucrânia, pico do petróleo, degradação do capital natural e crise climática e ambiental.

Historicamente, o aumento do preço dos alimentos provoca uma elevação do percentual da população mundial sujeita à fome e à insegurança alimentar. E os dados internacionais da FAO mostram que a população com carências alimentares era de 606,9 mil pessoas em 2014 e subiu para 768 mil pessoas (representando 9,9% da população total) em 2020.Não há dados ainda para 2022 mas este número subiu com certeza em função da invasão russa da Ucrânia.

Como mostrei no artigo “Crescimento demoeconômico no Antropoceno e negacionismo demográfico”, o mundo experimentou, nos últimos 250 anos, um crescimento econômico e demográfico, de tal ordem, que degradou a maioria dos ecossistemas do Planeta, provocou a perda de biodiversidade e desestabilizou o clima que havia apresentado uma impressionante estabilidade no Holoceno.

Assim, gestou-se uma nova Era geológica, o Antropoceno, época em que as atividades antrópicas se constituem em uma força tão poderosa que tem sido capaz de sobrepassar a capacidade de carga da Terra (Alves, 2022).

A realidade é que a demanda por alimentos continua aumentando. Na época da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, na Suécia, entre os dias 5 e 16 de junho de 1972, a população humana era de 3,85 bilhões de habitantes, deve atingir 8 bilhões em 2023 e pode alcançar 9 bilhões de habitantes antes de 2050.

Este caminho é insustentável e para a humanidade sobreviver em um quadro de crise ambiental e climática vai precisar planejar o decrescimento demoeconômico no século XXI.

* José Eustáquio Diniz Alves é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG (1980), tem mestrado em Economia (1983), doutorado em Demografia pelo CEDEPLAR-UFMG (1994) e pós-doutorado pelo Nepo/Unicamp.

Fonte: Eco Debate