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Opinião

Ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros sob ataque

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*Reuber Brandão

Movimentações populistas estão se organizando contra a ampliação do PNCV. A principal alegação é que dezenas ou centenas de famílias de agricultores serão impedidos de viver por causa do Parque.

Conheci a Chapada dos Veadeiros em meados dos anos 80. Ainda adolescente, a pobreza e abandono do chamado “Corredor da Miséria de Goiás” marcaram minha memória. No entanto, testemunhei desde então as transformações positivas que a Natureza do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (PNCV) fez na vida das pessoas, especialmente em Alto Paraíso e na vila de São Jorge. A notável melhora de condições de vida nessas localidades se deve muito ao uso público dessa fabulosa Unidade de Conservação, considerada um dos melhores destinos de natureza do mundo, segundo a TripAdvisor.

Considerando apenas 2021, mesmo com efeito da pandemia de Covid-19, o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros recebeu mais de 75 mil visitantes, excluindo aí quem visitou a região e não foi ao Parque. Uma dissertação de mestrado realizada na Universidade de Brasília estima que, em valores de uso direto aplicados entre 2015 e 2016, o PNCV gerou aproximadamente R$ 92 milhões em um ano, principalmente através do turismo na natureza.

O estudo ainda aponta que nenhuma atividade agrícola na região possui o mesmo potencial econômico que a conservação da natureza. E o turismo de natureza é apontado como o setor de maior tendência a crescimento com o final da emergência sanitária. Mais e mais pessoas buscarão a natureza. Mais e mais pessoas precisam da natureza.

Não por acaso, os municípios vizinhos apostam no crescimento turístico gerado pela ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros em 2017. Ampliar o Parque permite replicar, em maior escala, os processos e transformações econômicas vivenciadas por São Jorge e Alto Paraíso. Hotelaria, gastronomia, trilhas, infraestrutura viária, cultura, comunicações, educação, pesquisa. O leque de mudanças é grande. E essa aposta não é vazia.

Na área da ampliação existe, ao menos, 26 novos roteiros turísticos já identificados, com centenas de cachoeiras e dezenas de trilhas, contemplando todos os municípios vizinhos ao Parque. O fato é que a natureza da Chapada é a engrenagem que gera a economia da região. É a mola propulsora que movimenta a circulação regional de bens, produtos e pessoas. A natureza está acabando com corredor da miséria.

Mas se é assim, por que ainda há pessoas que atacam a conservação da natureza na Chapada dos Veadeiros, especialmente quando os benefícios são muito maiores que os conflitos?

O Pânico Moral

Poucas coisas são mais assustadoras que uma multidão em pânico. No calor do momento, na urgência do desespero, há pisoteio e morte. Talvez um de nossos instintos mais irracionais, a debandada de uma massa humana em fuga desvairada causa mortes com assustadora frequência.

Por outro lado, mesmo conscientes do risco das multidões, por que insistimos em nos agrupar? A razão parece ser evidente. Há vantagens óbvias em fazer parte de grupos grandes e há diversas compensações psicológicas e evolutivas para tal, incluindo a sensação de segurança em grupo, a percepção de pertencimento e acolhimento, a predisposição à interação e a formação de uma identidade coletiva circunstancial.

Tais compensações aparentemente tiveram impacto positivo ao longo da evolução humana, especialmente pela ampliação da força do grupo traduzida como número de pessoas. Essas vantagens pretéritas podem ser traduzidas hoje na tolerância (e mesmo apreço) por multidões que apresentamos.

Multidões, por outro lado, podem ser manipuladas. Essa é a base dos estudos de manejo de multidões, que visam evitar mortes relacionadas aos riscos criados pelo agrupamento de pessoas. Por outro lado, se grupos podem ser manejados para o bem, o estouro de uma multidão em pânico pode ser manipulado para razões pouco nobres, como nos ensina uma famosa animação da Disney envolvendo leões e hienas.

Redes sociais representam a possibilidade de reunir centenas, milhares ou milhões de pessoas sem que haja riscos de pisoteios, além de também elicitar compensações e sentimentos semelhantes aos agrupamentos reais, o que explica o sucesso das redes sociais, inclusive seu valor de mercado. Por outro lado, esses grupos também podem ser manipulados para objetivos perigosos, como a história recente nos mostra.

De forma correlata a estouros reais, o pânico é um gatilho essencial no processo de estouro de multidões virtuais. Nesse caso específico, o pânico moral possui enorme capacidade em incendiar grupos virtuais contra alvos específicos. No entanto, reações de pânico são explosivas, tendendo ao esgotamento após a exaustão do combustível aplicado.

Desta forma, um grande desafio para a manipulação das redes sociais é a contínua manutenção do ponto de explosão iminente, através do constante estímulo do estado de estresse. O estouro iminente das redes é obtido pelo frequente gotejar de alimento para o estresse, mantendo o rebanho sempre a um passo de reações extremadas.

Notícias falsas, mentiras, teorias conspiratórias, difamações e outras formas de desinformação de rápida difusão nas redes é o principal alimento para o pânico moral. Conhecer o que estressa o grupo alvo, a partir do entendimento sobre seus medos, opiniões, vínculos e outros vieses exploráveis, favorece a produção de conteúdo memético de rápido consumo.

Por outro lado, por ouvirem o que gostariam de ouvir, por necessidade de adesão ou por outra razão qualquer, a forte ligação entre o comportamento individual e o comportamento do grupo é muito comum, bem como a relutância em interromper a manipulação e negar o pânico. Mesmo quando a reação não é retumbante, se uma única pessoa realizar um ato extremo, a manipulação já se mostrou vitoriosa.

O “Pânico Ambiental”

Não é de agora que querem “passar a boiada” sobre o meio ambiente e diversas formas de manipulação têm sido usadas para criar algo que podemos chamar de “pânico ambiental”. Falácias como “não sobrará terra para produzir”, “indígenas tem terra demais”, “existem muitas unidades de conservação”, “ONGs querem a Amazônia”, dentre outras, têm sido replicadas à exaustão, como forma de manter multidões específicas propensas ao estouro “ambiental” em constante estado de estresse. Via de regra, aqueles que visam manipular essas pessoas possuem interesses bastantes específicos na concentração e no acesso a terras no país.

Como a questão territorial possui extrema relevância para a questão ambiental, uma forma de pânico ambiental largamente aplicado é o que podemos chamar de “pânico fundiário”, que atinge fortemente a percepção de propriedade e, com isso, é largamente consumido por quem possui terras, criando com eficiência um constante estado de estresse e agressividade.

Pânico Fundiário na Chapada dos Veadeiros

Movimentações populistas estão se organizando contra a ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. A principal alegação é que dezenas ou centenas de famílias de agricultores (o número muda de acordo com a ocasião) serão impedidos de viver por causa do Parque.

Esse movimento, iniciado por um Deputado Federal do PSL de Goiás, na lamentável proposta de decreto legislativo 338/21, encontrou apoio em alguns interesses particulares, especialmente dentre aqueles que buscam cercar um pedaço do paraíso com arame farpado. O fato é que todos os interesses contrários à ampliação do Parque, que representa um ganho para toda a sociedade brasileira, são interesses particulares bem específicos.

Apesar do discurso, dentro da área de ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros (PNCV) existem menos de 20 edificações, sendo que quase todas estão vazias ou abandonadas. As alegações, sem base factual, de que centenas de proprietários estão sem direito ao seu sustento não foca os poucos descontentes com a ampliação do Parque Nacional na região. São, antes de tudo, combustível para manter a tensão dos já tangidos a odiarem o meio ambiente.

É direcionado para as bolhas reativas onde esse tipo de manipulação é rapidamente absorvido. Visa reverberar pânico baseado em desinformação e ganhar atenção e apoio em escalas maiores que o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, a despeito dos estragos que tal estratégia possa causar à natureza, às pessoas e ao futuro.

Não existe interesse dos órgãos ambientais de que conflitos fundiários existam nas Unidades de Conservação. Casos específicos, quando ocorrem, são consequência da relevância ambiental da área ou da necessidade de uma poligonal que garanta a maior proteção aos recursos naturais locais. Simplesmente não existem centenas de agricultores impossibilitados de garantir seu sustento devido à ampliação do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Os cerrados nativos em excelente estado de conservação incluídos na ampliação são prova factual da ausência de uso agrícola dessa área, em sua maior parte apresentando solos rasos, rochosos e de baixa fertilidade natural.

A questão fundiária no Brasil é bastante confusa e é especialmente complexa na Chapada dos Veadeiros. Quando há conflitos documentais, o pagamento por desapropriações pela União depende de autorização judicial. Simplesmente não há como pagar para quem alega propriedade.

É preciso provar inequivocadamente o direto à indenização. Por isso, a regularização fundiária na região demanda o grande esforço que a equipe do Parque Nacional e do ICMBio tem feito ultimamente. Existe documentação clara do número de propriedades sobrepostas, parcial ou totalmente, com o Parque. Já há mais de 130 processos abertos e algumas propriedades já foram indenizadas.

O PNCV é hoje Unidade de Conservação prioritária para regularização pelo ICMBio, possuindo mais de R$ 100 milhões disponíveis para o pagamento de terras. O importante agora é que os interessados, munidos com seus documentos, busquem o apoio da UC para a formalização dos seus processos, de forma ordeira e civilizada.

O argumento de que não se pode criar áreas protegidas caso não sejam pagos os passivos fundiários é uma falácia lógica. É preciso deixar claro que questões fundiárias não são geradas pelo meio ambiente, mas sim pela ausência pretérita do Estado no planejamento da ocupação do território ao longo da história do Brasil.

É resultado da forma como a ocupação do território se deu e da (in)ação de cartórios e institutos de terras ao longo do tempo. O fato é que, com a presença do Poder Público na forma da Unidade de Conservação, cria-se a oportunidade para a regularização fundiária e para a pacificação da ocupação territorial na região.

Desapropriações ocorrem por utilidade pública e não são exclusividade de políticas ambientais. Ocorrem porque o interesse coletivo se sobrepõe ao direito particular, conforme ensina nossa Constituição. Um Parque Nacional é patrimônio da coletividade, protegendo o bem comum mais valioso à vida, que é a biodiversidade e os serviços ecossistêmicos.

Nem um Hectare a Menos

Acredito que, a despeito do largo impacto recente sobre as pessoas, a manipulação social através do pânico tenderá ao esgotamento, seja pela educação coletiva, pela conscientização individual, pelo fastio, pela saturação ou pelo simples cansaço que o estresse, o pânico e a agressividade causam.

A população do Estado e os milhões de usuários da Chapada dos Veadeiros são conscientes e a Moção de Repúdio 04/2022 apresentada à Assembleia Legislativa de Goiás pelo Deputado Estadual Antônio Gomide, da Frente Parlamentar em defesa da Chapada dos Veadeiros, é uma boa amostra dessa conscientização.

A esmagadora maioria entende a importância, valoriza o Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros e defende os seus limites sem um hectare a menos. Para toda ação há uma reação. Jogar contra a proteção da Chapada dos Veadeiros, uma das maiores joias do Cerrado e motivo de orgulho de Goiás e do Brasil, pode custar muito. De paredões aos anões a reeleições aos populistas.

Minha admiração a todas e todos que lutam pela Natureza. Meus descendentes agradecem.

*Reuber Brandão é professor de Manejo de Fauna e de Áreas Silvestres na Universidade de Brasília. Membro da Rede de Especialistas em Conservação da Natureza da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.

Fonte: O Eco