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Opinião

O greenwashing, a cenoura e o negacionismo bolsonarista

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*Por Elizabeth Carvalho

A desmoralização do greenwashing é uma das principais frentes de batalha da questão ambiental que lidera o debate sobre justiça climática na Europa, e em especial na França, onde o governo acaba de apresentar a chamada ‘lei do meio ambiente e resiliência’. Esta é uma lógica complexa para o governo brasileiro, mas o negacionismo ambiental bolsonarista entrou em contagem regressiva.

Como cachorro magro, Jair Bolsonaro fez no dia 11 de fevereiro, um aceno tímido ao banquete ecológico que Emmanuel Macron tanto deseja oferecer ao mundo. Ao lançar o programa “Adote um Parque”, onde convoca empresas privadas a contribuírem para a proteção ambiental que seu governo vem sistematicamente desmontando a galope, soltou uma frase desajeitada e reveladora de visão estreita das relações internacionais de seu governo. “não tem por que Brasil e França se distanciarem”, disse ele.

E, completou, referindo-se à Guiana – a pequena nesga da floresta amazônica que os franceses gostam de chamar de um dos “confetes” preservados dos tempos de seu império colonial: “afinal de contas, somos vizinhos! (….) Temos que ser amigos”. O vídeo do discurso de Bolsonaro, onde compara a “adoção de um parque à adoção de uma criança” e enaltece a Rede de Supermercados Carrefour, aparentemente a primeira a aderir ao programa, foi imediatamente postado no site da Embaixada brasileira em Paris.

Não demorou muito para que milhares de mensagens nas redes sociais começassem a circular, manifestando indignação contra a participação do poderoso Grupo francês no greenwashing (*) de Bolsonaro, destinando 600 mil euros por ano para financiar a proteção no estado de Rondônia. Greenwashing, que significa literalmente “Lavagem Verde”, é hoje expressão corriqueira para nomear ações atos de empresas e de governos que trabalham uma falsa imagem para esconderem suas práticas predatórias antiecológicas.

Macron foi o estadista que, em agosto de 2019, lançou um alerta a um planeta em estado de choque diante da escalada de incêndios que aceleravam a devastação da floresta amazônica, um deliberado estímulo de ação do governo Bolsonaro ao desmonte das políticas ambientais. Um mês antes, com uma jogada de marketing vulgar, fotografado numa cadeira de barbeiro, o presidente brasileiro havia deixado plantado em Brasília o ministro das Relações Exteriores francês Jean-Yves Le Drian, encarregado de transmitir “as linhas vermelhas” que o Brasil não poderia transpor se desejasse a ratificação do controvertido acordo entre a União Europeia e o Mercosul.

Em seguida a seu alerta no Twitter, Macron recebeu o G-7 em Biarritz e foi categórico: a França retirava seu apoio ao acordo. Bolsonaro brandiu um falso nacionalismo de “ataque à nossa soberania” e liberou seu “gado”, inclusive com o apoio grosseiro de seu ministro da Economia Paulo Guedes, para outro gesto de descompostura imperdoável: ofender a mulher do presidente, Brigitte Macron.

A desmoralização do greenwashing é uma das principais frentes de batalha da questão ambiental que lidera o debate sobre justiça climática na Europa, e em especial na França, onde o governo acaba de apresentar ao Parlamento um novo projeto de lei, chamado “lei do meio ambiente e resiliência”. Para elaborá-lo, numa experiência inédita, foram nomeados por sorteio 150 representantes da sociedade civil para uma Convenção Cidadã sobre o Clima, e o governo terminou por acolher 46 das 149 propostas da Convenção Cidadã que visam acelerar a luta contra o aquecimento do planeta.

Fim do comércio de filtros térmicos, interdição de publicidade de energias fósseis, proibição de voos domésticos caso haja alternativa de transporte de trem para distancias percorridas em até duas horas e meia, interrupção da venda de veículos a gasolina ou diesel até 2030, redução das áreas de solo artificializado para preservar espaços naturais, generalização de cardápios vegetarianos nas cantinas escolares e refeições compostas ao menos com metade de produtos frescos na restauração coletiva (empresas, hospitais, colônias de férias, prisões, casas de repouso): a lei promove algumas mudanças substanciais no modo de vida francês, destinadas a reduzir 40% das emissões de gás de efeito estufa até 2030 em relação a 1990.

Ainda assim, antes mesmo de ser votada, já foi considerada frustrante e obsoleta por nada menos que 101 organizações ambientalistas que enviaram uma carta aberta a Macron. Acusam-no de “falta de ambição” por não acolher tantas outras propostas da Convenção que poderiam oferecer ao país “um formidável potencial de saída da crise climática, sanitária, econômica e social”.

A consciência ecológica desenvolvida nos últimos dez anos expandiu sua amplitude com a nova e inevitável correlação entre meio ambiente e pandemia. A pressão sob Macron se intensificou: em 3 de fevereiro, em decisão inédita, o tribunal administrativo de Paris condenou o Estado pela “falta” cometida ao fracassar em reduzir suas emissões de gás de efeito estufa de acordo com o teto por ele mesmo fixado no Acordo de Paris em dezembro de 2015.

Dois milhões e oitocentas mil assinaturas, colhidas em 2018 em pouco mais de 24 horas por inicialmente quatro grandes associações ambientalistas, deram origem a um processo de grande repercussão nacional, que ficou conhecido como “O Caso do Século”. O governo tem dois meses para se explicar e apresentar um plano de medidas que o façam recuar ao menos nos 3,5 por cento a mais de emissões a que se comprometeu.

As fileiras de uma nova luta sem tréguas pela justiça climática com os lobbies que favorecem a maquiagem do greenwashing e impedem o endurecimento das normas europeias estão sendo engrossadas. Um de seus alvos mais importantes é o “desmatamento importado”, para a qual a União Europeia ainda contribui com 39 por cento. A França, apesar de engajada na estratégia de combate ao consumo de produtos originários da destruição de florestas, segue sendo uma consumidora voraz de soja transgênica, sobretudo brasileira – três milhões e meio de toneladas a cada ano, basicamente destinadas à alimentação de suas galinhas e seus bois.

As campanhas de boicote a esses produtos são acompanhadas de um apoio crescente às cooperativas de agricultores engajados na cadeia de produção de alimentos saudáveis, do plantio à mesa. Uma crescente demanda por transformação nos meios de produção e consumo está em andamento. Os franceses estão cansados da retórica política dos acordos e cobram resultados concretos.

É com esta nação em efervescência que a desastrosa política externa de Bolsonaro pretende agora “trocar de bem” através de seu blábláblá de “filho adotado”. Bolsonaro se deu conta de que precisa ao menos emplacar na sua biografia a ratificação do acordo EU Mercosul – na verdade costurado nos últimos 25 anos -. Macron, por sua vez, está convencido de que, ainda por um bom tempo, poderá seguir na carroça balançando a cenoura na frente do burro, sem deixar tempo para que ele a coma antes de terminado o mandato de 2022.

Nos próximos meses, as questões ambientais serão o mais forte elemento internacional de pressão contra o governo de Jair Bolsonaro. A nova inflexão do governo democrata dos Estados Unidos, que neutralizou a extrema-direita neopentecostal supremacista branca e terraplanista de Donald Trump, fez do meio ambiente o estandarte de seu “soft power”. Joe Biden retornou ao Acordo de Paris de 2015 que havia sido anulado por Trump e já avisou que o Brasil estará passível de sanções se o desmatamento florestal não foi regulado. Não há cheque em branco para o Brasil sobre a Amazônia.

Do ponto de vista da sociedade civil, uma espantosa mobilização mundial social pelo clima vai se deslocando das ruas e empurrando energicamente as portas dos parlamentos e dos tribunais. Em 2020, eram contabilizados ao menos 1550 contenciosos climáticos em 38 países, sendo que 1200 nos Estados Unidos, de acordo com relatório divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente.

Um número que dobrou nos três últimos anos, e que deu vitórias de porte a ambientalistas não apenas na França, mas na Holanda, na Irlanda, em Portugal. Os dossiês sobre a diversidade e contra a ação das multinacionais petroleiras são os mais significativos. E é mesmo possível que a noção de Ecocídio para responsabilizar Estados diante da Corte Criminal Internacional ganhe força no parlamento europeu: na votação de 2019, uma emenda propondo a introdução desta noção na legislação contra o desmatamento deixou de ser aprovada por dois votos apenas.

Diante do quadro atual, no momento em que a França enfrenta uma crise sanitária cuja conta já passou de 150 bilhões de euros, economistas e políticos discutem agora efetivamente é o pagamento da dívida pública do país, já acima de 120 por cento do PIB. O fracasso de um sistema eficaz de vacinação por falta dos produtos saídos dos laboratórios dos países ricos ocidentais é talvez o retrato mais dramático das consequências das reformas neoliberais das últimas décadas – cortes drásticos nas pesquisas científicas, nos centros de saúde, reformas nas aposentadorias e no mundo do trabalho, redução de apoio aos desempregados, além de sobrecargas de impostos – e a pergunta que se coloca diante de todos é: não seria esse o momento mais oportuno de uma guinada para investir massivamente na transição ecológica e na solidariedade social?

Afinal, não faltam elementos para provar que o greenwashing em nada ajudará a União Europeia a atingir a recém proclamada ambição de seu Pacto Verde, rumo à total neutralidade de carbono em 2050. Esta é talvez uma lógica bastante complexa para um governo retrógrada que viaja na contramão da história, mas, não há dúvidas de que o negacionismo bolsonarista entrou em contagem regressiva.

Elizabeth Carvalho é correspondente da GloboNews e da TV Globo em Paris

Fonte: G1