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Opinião

A biodiversidade e o mito da agricultura tropical brasileira

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* Luís Fernando Guedes Pinto

A FAO (organização da ONU para agricultura e alimentação) publicou em fevereiro o relatório O Estado da Biodiversidade do Mundo para Agricultura e Alimentação com o alerta de que “a biodiversidade é fundamental para proteger a segurança alimentar global”.

Complementa que a diversificação de genes e espécies nas lavouras e nos ecossistemas nativos é um dos pilares que sustentam os sistemas de produção agrícola e os tornam mais resilientes às situações extremas, como os efeitos das mudanças climáticas. É, portanto, fundamental para a estabilidade e o aumento da produção de alimentos e para alcançarmos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Todavia o relatório conclui que um conjunto de fatores vem diminuindo a biodiversidade em importantes países produtores de alimentos, como o Brasil. O desmatamento aparece como uma das principais causas da diminuição da vida. A transição para sistemas de produção agrícola mais intensivos, com a adoção das monoculturas, e o uso de agrotóxicos também se destacam como fatores fundamentais para a perda da biodiversidade global e dos países produtores.

Para além das lavouras, o comércio internacional, a globalização dos hábitos de consumidores, a concentração das indústrias de alimentos e a homogeneização das dietas têm afetado os sistemas alimentares e determinado uma simplificação e padronização do que se produz no campo e do que se come; com a diminuição das espécies cultivadas e da sua variabilidade genética. Além da perda da biodiversidade, isto tem causado doenças crônicas e uma diminuição na expectativa de vida da geração fast food.

O estudo recomenda, entre outras medidas, o estabelecimento de áreas protegidas, a proteção de ecossistemas nativos e a diversificação de sistemas de produção agrícola e de dietas como saídas para manter e recuperar a biodiversidade e garantir o futuro da produção de alimentos.

O Brasil desponta como um dos países que abrigam uma das maiores biodiversidades e produção de alimentos do mundo. O relatório destaca políticas nacionais que têm incentivado a proteção e a diversificação da biodiversidade no sistema agroalimentar em campos distintos, como a Política Nacional de Alimentação do Ministério da Saúde e a Política Nacional de Agroecologia e o Código Florestal.

Por outro lado, estamos entre os maiores desmatadores e consumidores de agrotóxicos do mundo. Afinal, onde estamos? A conclusão de sempre: Brasil, o país das contradições. De fato temos políticas e casos de produção agrícola e sistemas alimentares para nos orgulhar. Mas, olhando de longe, a foto geral não é bonita e tende a piorar. Nós nos acomodamos com a fama de que fazemos a melhor agricultura tropical do mundo e não enfrentamos o problema estrutural.

Enquanto uma das principais marcas dos trópicos é a biodiversidade, a produção brasileira de commodities agrícolas (que responde de longe pela maior parte da área e da produção agrícola nacional) é feita em lavouras com uma espécie (monoculturas) com baixa diversidade genética entre plantas. É uma adaptação da produção agrícola de países temperados. Se soltarmos um produtor de milho ou de soja de Ohio (EUA) em uma plantação no Mato Grosso, ele vai achar que está em casa. A estrutura da lavoura é idêntica e as práticas são quase todas as mesmas. Fazemos uma produtiva agricultura temperada nos trópicos, mas isto tem um alto custo ambiental.

Chegamos a cultivar campos de clones, que são indivíduos geneticamente idênticos. Aplicamos herbicidas, fungicidas e inseticidas para matar todo tipo de vida que possa aparecer e atrapalhar o crescimento das plantas que vamos colher. Fazemos plantio direto (dependente de herbicidas), usamos bactérias que fixam nitrogênio do ar e mais algumas outras práticas interessantes e chamadas de “sustentáveis”, mas isto é agricultura tropical?

Não! A agricultura tropical tem que ser apoiada na biodiversidade. A diversidade de microrganismos, plantas e animais deve estar presente no solo, nos campos de cultivo e na paisagem. Isto não significa que não será produtiva e eficiente. Este é outro falso mito criado pelo status quo (leia-se grandes produtores e donos de terra, empresas de máquinas, sementes, agrotóxicos, etc.) para não mudar o que lhes interessa.

Construímos falsos mitos que precisam ser desconstruídos urgentemente. O relatório da FAO tem claras orientações para políticas e ações que de fato nos conduzam a sistemas agroalimentares diversos e realmente saudáveis e sustentáveis. Entre muitas coisas, o nosso sistema público de pesquisa agropecuário precisa mudar de rumo e encarar o desafio de uma revolução no modo de se produzir com base na biodiversidade.

Um exemplo: a ILPF (integração lavoura-pecuária-floresta) é uma grande inovação, com uma série de benefícios e ganhos agronômicos, ambientais e econômicos em relação a somente uma das opções (grãos ou pecuária ou árvores). Mas, do ponto de vista ecológico, é simplesmente uma sucessão de monoculturas de espécies exóticas. Precisa ser muito aprimorada com a incorporação da biodiversidade para poder realmente ser chamado de agricultura tropical!

Mais um exemplo que qualquer pessoa da região Centro-Sul pode conferir hoje: veja a cor da água do rio da sua cidade. Todos marrons, com muita terra, o maior patrimônio da agricultura de um país jogado fora. Não conseguimos nem resolver a conservação do solo em uma das regiões com a agricultura mais “moderna” do mundo. Se o solo estivesse coberto o ano todo e as matas ciliares filtrassem o que ainda escapa do controle, os rios teriam água limpa, o que traria vantagens para todos, especialmente para as empresas de tratamento de água das nossas cidades. Se a agricultura fizesse a sua lição de casa número um, a água que bebemos seria melhor e mais barata.

Mas tudo o que anda em curso em Brasília vai na contramão: diminuição das áreas protegidas, boicotes ao Código Florestal e à rotulagem de alimentos, afrouxamento do licenciamento e da fiscalização ambiental, anistia a desmatadores, menor controle sobre os agrotóxicos, o enfraquecimento de políticas de apoio à agricultura familiar, à agroecologia, a programas de compra e distribuição de alimentos e uma lista que não acaba.

A FAO (liderada por um brasileiro) reiteradamente tem apontado a urgência e importância de mudanças estruturais nos sistemas agroalimentares. Tratou do tema no seu outlook da produção de 2018/2027, nos relatórios de 2018 sobre a situação dos solos e das florestas e neste longo e excelente material sobre a biodiversidade. É um farol a ser seguido e que deveria ao menos subsidiar a revisão de todas as politicas do sistema agroalimentar em pauta no Congresso e na Esplanada dos Ministérios. Deputados, senadores, ministros e seus assessores, leiam e conversem com a sociedade antes de tudo!

* Luís Fernando Guedes Pinto é agrônomo e membro da equipe do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola).

Fonte: Folha de S.Paulo