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Opinião

Prefeitura do Rio quer autódromo na Floresta de Deodoro

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*André Ilha

Na Zona Norte do município do Rio de Janeiro, num dos pontos mais áridos e desprovidos de cobertura arbórea da cidade, resiste um fragmento florestal conhecido como "Floresta de Deodoro", por se situar no bairro homônimo. Com área de cerca de 115 hectares, trata-se de raro remanescente de mata de baixada, uma vez que quase todos os demais foram suprimidos há tempos em decorrência do processo de ocupação do solo precisamente por serem planos. Portanto, embora o Rio de Janeiro ainda abrigue significativas extensões de matas de encosta nos seus três grandes "pulmões verdes" – Pedra Branca, Tijuca e Gericinó-Mendanha -, as espécies típicas de baixada contam com poucos refúgios possíveis.

A importância florística da Floresta de Deodoro foi atestada pelos pesquisadores do Jardim Botânico do Rio de Janeiro (JBRJ), que recomendaram enfaticamente a sua preservação por meio da criação, no local, de uma unidade de conservação. Segundo eles, esse fragmento "… apesar de relativamente pequeno, possui grande relevância para a manutenção da viabilidade genética de populações de animais e plantas nativas nas áreas naturais do município do Rio de Janeiro". Além disso, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável da cidade considera aquela área como "Sítio de Relevante Interesse Ambiental e Paisagístico"; ela integra um projeto da própria prefeitura denominado "Corredores Verdes", por potencialmente viabilizar a conexão dos maciços da Pedra Branca e do Mendanha; e o Plano Municipal de Conservação e Recuperação da Mata Atlântica do Rio de Janeiro indica como áreas prioritárias para a conservação ambiental, na forma de unidades de conservação, as florestas de terras baixas como aquela.

Tendo tudo isso em vista, o Grupo Ação Ecológica (GAE) elaborou uma proposta completa para a transformação da Floresta de Deodoro no Parque Natural Municipal do Camboatá – nome que faz alusão à suave elevação de terreno que ali existe, o Morro do Camboatá. A proposta, que engloba toda a mata e outros 55 ha degradados ao seu redor, a serem recuperados, foi submetida ao Conselho de Meio Ambiente da Cidade (Consemac), que a aprovou sem ressalvas. Mas aí parou.

Isso porque o prefeito Marcelo Crivella exumou um projeto que se julgava há muito abandonado devido ao disparate que representa, que é o de implantar, ali, o novo autódromo do Rio de Janeiro. Como a antiga pista de automobilismo da cidade foi desalojada para a construção do Parque Olímpico da Barra, em contrapartida foi anunciada, em 2012, a construção de uma nova sobre a Floresta de Deodoro, numa parceria entre o Ministério dos Esportes e o Comando do Exército, que administra a área. Esse projeto, contudo, foi alvo de uma saraivada de críticas, a começar pela possibilidade de ainda haver ali explosivos não detonados em virtude da explosão de um antigo paiol em 1958.

Além disso, havia a evidente questão do dano ambiental, pois o então prefeito Eduardo Paes, com característica impetuosidade, queria viabilizar a obra sem estudo de impacto ambiental. Depois, pressionado, lançou mão de um estudo elaborado pela Fundação Getúlio Vargas repleto de falhas, que foram apontadas pelos ambientalistas, pelos pesquisadores do JBRJ e pelo Ministério Público Estadual, que ajuizou ação civil para impedir a consumação do dano sem que fossem decentemente avaliadas as suas consequências ecológicas. Essa ação teve o condão de impedir a obra no local naquele momento, e imaginava-se que o assunto não voltaria mais à tona.

Pois mudou o governo municipal, e eis que fomos todos surpreendidos, logo no início da administração Crivella, com a publicação de um Procedimento de Manifestação de Interesse (PMI) para que empresas privadas apresentassem propostas para a retomada do projeto. Cinicamente, houve quem afirmasse que aquele seria um "autódromo-parque", ou seja: as poucas árvores que escapassem do corte para a construção das pistas, dos boxes, das arquibancadas e demais estruturas de apoio, além de um kartódromo e amplas "áreas de negócios", serviriam como paisagismo para agregar valor ao empreendimento.

A proposta torna-se ainda mais incompreensível porque a poucos metros de distância da Floresta de Deodoro há uma área muitas vezes maior e inteiramente desmatada há décadas, que poderia perfeitamente abrigar o novo autódromo da cidade. Em parte dela, aliás, foi implantado sem polêmica, devido ao baixo impacto, o "Parque Radical de Deodoro", também em função dos Jogos Olímpicos. Por que a insistência, então?

Esperamos que essa ideia nefasta seja definitivamente sepultada e, nesse sentido, há razões para algum otimismo, já que o atual prefeito do Rio de Janeiro não se destaca pelo cumprimento das promessas e dos projetos que anuncia. Mais importante ainda, no entanto, é que a criação do Parque Natural Municipal do Camboatá ocorra o mais rápido possível, para que esse importante remanescente florestal não corra mais riscos. E, claro, para que a população do entorno, majoritariamente constituída por famílias de baixa renda e com escassas opções de lazer próximas, possa usufruir, após a definitiva limpeza do terreno, do prazer e do bem-estar do contato direto com a natureza que cidadãos de outras partes da cidade já desfrutam.

*André Ilha foi presidente do Instituto Estadual de Florestas do Rio de Janeiro; Superintendente de Biodiversidade da Secretaria de Estado do Ambiente do Rio de Janeiro; e Diretor de Biodiversidade e Áreas Protegidas do INEA de 2009 a 2014.