Opinião

O perigo do negacionismo em relação à crise climática

*Dalce Ricas

Em notável entrevista ao jornalista Ayrton Centeno, do jornal Brasil de Fato, no dia 18 de maio, Rualdo Menegat, doutor em Ciências de Ecologia de Paisagem, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenador do Atlas Ambiental de Porto Alegre, tornando-se um dos maiores conhecedores das questões do solo, subsolo, rios, clima, vegetação, relevo, fauna e presença humana na região Metropolitana de Porto Alegre e mesmo do território gaúcho, discorre sobre a tragédia no RS, negacionismo, papel da agricultura e desmonte da política ambiental.

A entrevista é tão interessante, que destaquei alguns trechos: ele cita alguns fatores básicos para se entender a tragédia, como a geomorfologia, geologia e hidrografia onde se situam as áreas atingidas, que definem o caminho das águas; integridade dos serviços ecossistêmicos e o uso do solo como fatores que interferem na infiltração e velocidade do escoamento das águas.

As chuvas que caem na região Nordeste do planalto rapidamente escoam para rios de vales profundos e estreitos, como o Jacuí, Taquari-Antas, além do Caí, Sinos e Gravataí, que rapidamente aumentam de volume e escoam em alta velocidade desde as terras altas a 800 metros de elevação até as terras baixas no sopé da serra (escarpa Serra Geral). Ali, os vales se abrem e a água inunda uma enorme planície.

Sobre o papel da grande lavoura empresarial na derrubada das matas ciliares, ocupação do Pampa, aumento do uso de agrotóxicos e assoreamento dos rios: “Podemos ter duas situações extremas. Uma, em que os serviços ecossistêmicos, que dizem respeito à integridade dos rios, matas ciliares, banhados, entre outros, estão completamente desestruturados. Nesse caso, a água escorre sobre o solo, infiltra pouco, e rapidamente flui para rios e vales profundos.”

“Outra situação ocorre quando os serviços ecossistêmicos estão estruturados. Nesse caso, a água infiltra no solo em grande quantidade, os banhados encharcam e alimentam aquíferos, as matas detêm a água e também a velocidade das correntes. Nos últimos 20 anos, as políticas públicas foram no sentido de favorecer a maximização do uso do solo por meio do plantio de soja entre outras culturas. As matas ripárias e banhados foram desaparecendo, o que favoreceu o escoamento vertiginoso da água.”

Perguntado sobre o Antropoceno: “O Antropoceno é a denominação de uma época do tempo geológico em que ocorre o domínio humano no planeta Terra. Não só as matas ao nosso redor foram derrubadas e os rios poluídos, como a química da atmosfera foi alterada pelas enormes emissões de gases de efeito estufa, como o CO2, que causam o aquecimento global.

A mudança climática é um dos fenômenos que mostra como as atividades humanas passaram a modificar as esferas planetárias. Mas não é o único. A disseminação de resíduos sólidos, como o plástico, ocorre em todos os ecossistemas, inclusive nos marinhos profundos. Por sua vez, as cidades alcançaram gigantismos impressionantes. No Japão, por exemplo, de Tóquio-Yokohama até Kobe, um eixo de apenas 600 km, habitam cerca de 66 milhões de pessoas.

São cordilheiras de megacidades, que consomem todos os tipos de materiais da Terra. A produção de concreto desde 1930 até hoje foi de 550 bilhões de toneladas. Grande parte do concreto é composta de cascalho e areia extraída dos rios, às custas da desestruturação dos ecossistemas hídricos naturais.
Portanto, devemos repensar profundamente as bases de nosso processo civilizatório. As cidades, por exemplo, deveriam ser menos parasitárias, passando a produzir alimentos e reciclando mais resíduos, inclusive os orgânicos. A agricultura, por sua vez, deveria ser regenerativa, cuidando do solo, dos ecossistemas e produzindo alimentos saudáveis sem agrotóxicos.”

Sobre o Antropoceno: Ele “nos mostra que há limites claros para habitar este planeta. Até pouco tempo, cultivou-se o dogma de que poderíamos utilizar os recursos naturais de modo ilimitado. Mas cada recurso – ferro, cobre, areia, madeira, animais – é um pequeno componente de um sistema local, de uma paisagem. Quando um recurso é explorado de forma desenfreada, desestruturam-se os sistemas em escalas cada vez mais crescentes, até que toda a biosfera passe a ficar desestruturada. O planeta Terra não é uma máquina que opera sempre da mesma maneira e, portanto, repõe o que retiramos dele.

Ele tem vários modos de operação, que ficaram registrados em sua memória, que são as camadas rochosas. Os geólogos ao analisarem essas camadas identificam que algumas delas contém imensos estoques de energia, como o carvão e petróleo, que armazenam CO2 retirado de atmosferas antigas da Terra. Devolver esse CO2 para a atmosfera por meio da queima de combustíveis fósseis, significa fazer retornar essa energia para o sistema, aumentando sua desordem, levando o sistema a operar diferentemente.”

Sobre o negacionismo: “Essa é uma questão muito importante. Veja que o avanço das políticas neoliberais que desmantelaram a infraestrutura do estado e debilitaram a capacidade social de enfrentar catástrofes climáticas como a do RS foi acompanhada de um movimento negacionista que desinforma sobre a emergência climática e cria folclores como o da Terra plana como elementos de distração.”

“O que sobra para a população, neste caso, são as profecias, que pouco ajudam em uma hora dessas. Por isso, o negacionismo passa a ser importante política de interdição do conhecimento e uma peça chave nesse jogo sórdido.”

“Não temos a opção de nada mudar. Isso seria o mesmo que deixar os coletes salva-vidas trancados enquanto o navio afunda.” “Nosso legado enquanto geração é, então, mostrar que as catástrofes não são um destino, uma fatalidade. Temos condições sociais, conhecimento e técnicas para enfrentá-las. Essas condições são aquelas capazes de informar e dar a nossos filhos um sentido de coragem para viverem neste mundo inquieto.”

*Dalce Ricas é superintendente executiva da Amda. Artigo elaborado com base na entrevista de Rualdo Menegat ao Brasil de Fato.