Opinião

Plano contra desmatamento no cerrado não tem a ambição necessária

*Yuri Salmona

O bioma cerrado acumulou descaso e incompreensão por séculos, gerando uma conta cara a ser paga. Essa toada vem se agravando, mesmo com a reabertura do diálogo ambiental com o atual governo. Mês após mês, as taxas de desmatamento crescem em relação aos anos anteriores, batendo recordes.

Já acumulamos a perda de 52% do cerrado nativo, que hoje representa 40% do desmatamento do país. Essa tendência vai na contramão da importância estratégica do bioma. Para que isso fique sedimentado, atravessaremos aqui um rio de dados.

Em síntese, o Brasil não pode abrir mão dos serviços ecossistêmicos que o cerrado provê. Mirando apenas o aspecto hídrico, as águas dos rios do cerrado hidratam 40% da população brasileira, abastecem as usinas de Itaipu e Sobradinho e viabilizam quase metade da produção nacional de soja e carne bovina (44% e 48% respectivamente) e mais de 3.000 rios da amazônia nascem no cerrado, o berço das águas.

Contudo, essa capacidade de bombear água para o país depende da manutenção da vegetação nativa, do equilíbrio climático e do consumo controlado, entre outras condições.

Mesmo o bioma sendo extremamente desprotegido (2,7% em unidades de conservação de proteção integral e 20% a 35% em reservas legais), estima-se que metade dos desmatamentos aconteçam ilegalmente e que parte significativa dos autorizados tenham graves irregularidades.

Quanto ao clima, a temperatura no cerrado subiu 1⁰C e a chuva diminuiu (200 mm) e atrasou 56 dias. Quanto ao consumo, 72% da água do país vai para agricultura, 11% para pecuária, e cerca de 42% da agricultura e 25% das pastagens brasileiras estão no cerrado, onde também se concentram 80% das estruturas de irrigação.

Nessas condições, o provimento de água e de outros serviços é gravemente impactado. Tanto que já foram observadas a redução de 41% na extensão dos corpos d’água do bioma e de 15% na vazão dos rios e o rebaixamento do aquífero Urucuia em 7 metros, além dos racionamentos de água e energia em grandes capitais.

Fica óbvio que todos têm muito a perder com a continuidade do desmatamento. O agronegócio, o setor energético, indústrias, moradores de cidades e comunidades rurais, todos perdem. Para reequilibrar as funções do bioma, precisamos reativar e aprimorar instrumentos já estabelecidos e criar outros.

O instrumento que deveria responder a essa urgência é o PPCerrado (Plano de Combate ao Desmatamento e Queimadas no Cerrado), que está em consulta até o dia 13 de outubro. No entanto, a proposta não apresentou a ambição necessária.

A ambição deveria ser zerar o desmatamento até 2030. E ponto! Mas o plano tem como meta zerar o “desmatamento ilegal” até 2030. Entre uma frase e a outra há aproximadamente 27 milhões de hectares a serem derrubados.

Vejamos a criticidade do contexto: descontrole do desmatamento, ampla ilegalidade, falta de integração entre os sistemas estaduais e federal, autorizações de supressão de vegetação despadronizadas e com baixo rigor, ordenamento territorial frágil nas terras públicas, inúmeras propriedades rurais sem avaliação do Cadastro Ambiental Rural, além dos impactos sociais e ambientais. Essa composição demanda medidas contundentes como uma moratória do desmatamento no cerrado. E, sim, sabemos do custo político disso, mas o custo de não fazê-las é imensamente maior. Seria uma oportunidade para trazer luz a uma engrenagem que a todos interessa que funcione bem.

Tendo em vista a complexidade do tema, o período de consulta pública deveria ser ampliado e o debate, intensificado e aprofundado. Caso contrário corremos o risco de não mudar o rumo da história. E isso me remete à década de 1980, quando Marina Silva, corajosamente, junto a seus colegas seringueiros, faziam resistência pacífica para impedir o desmatamento, se colocando na frente de madeireiros munidos de motosserras, o que ficou conhecido como “empates”.

O PPCerrado precisa ser o “empate” dos anos 2020, pois, se ainda se pode chamar a amazônia de pulmão, o cerrado é o coração que bombeia água para todos nós.

* Yuri Salmona é diretor executivo do Instituto Cerrados.

Fonte: Folha de São Paulo