ONGs ambientais vão ao STF contra desmonte na Lei da Mata Atlântica
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Belo Horizonte, 31 de julho de 2020 – Seis organizações ambientais pediram ao Supremo Tribunal Federal (STF) que rejeite a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 6.446, que foi ajuizada pelo Presidente da República na tentativa de enfraquecer as regras de proteção da Mata Atlântica. A solicitação, que se baseou em argumentos ecológicos, jurídicos e econômicos, foi feita em manifestação de Amici Curiae (instrumento que possibilita a participação da sociedade civil no STF), assinada pela Fundação SOS Mata Atlântica, WWF-Brasil, ISA (Instituto Socioambiental), Rede de ONGs da Mata Atlântica, Amda (Associação Mineira de Defesa do Ambiente) e Apremavi (Associação de Preservação do Meio Ambiente e da Vida).
Por meio da ADI, o Governo Federal busca usar o Código Florestal para restringir o alcance de dispositivos da Lei da Mata Atlântica que exigem a recuperação ambiental de áreas ilegalmente desmatadas a partir de 1990, quando foi aprovada a primeira norma especial de proteção do bioma. O objetivo seria regularizar uma pequena parcela de áreas exploradas pelo setor agrícola, cujas atividades se iniciaram de forma ilícita.
Se prosperar, a medida anistiará multas, acabará com embargos e impedirá o reflorestamento de regiões degradadas. Além de estimular novos desmatamentos – por fomentar a cultura do perdão dos crimes ambientais –, o pleito do Governo pode causar danos irreversíveis para o bioma, considerado um dos mais ricos em biodiversidade no planeta e o mais degradado do país.
Ao recorrer ao STF, o Governo tenta reestabelecer o Despacho nº 4410/2020, que foi revogado pelo Ministério do Meio Ambiente pouco menos de dois meses depois de sua publicação, em razão de forte pressão da sociedade civil e do Ministério Público. Tal como a ADI, o despacho, que foi elaborado à pedido do Ministério da Agricultura, visava legalizar desmatamentos ilícitos ocorridos na Mata Atlântica.
Uma série de ações civis públicas e ações populares foram ajuizadas para anular o despacho, uma delas proposta pela SOS Mata Atlântica. Após a divulgação de vídeo em que o Ministro de Meio Ambiente propõe ao governo aproveitar a pandemia causada pelo novo coronavírus para “passar a boiada” e flexibilizar a legislação, o Presidente da Comissão de Meio do Senado Federal e a 4ª Câmara do Ministério Público Federal solicitaram que a Procuradoria-Geral da República investigasse o Ministro por possível crime de responsabilidade envolvendo a elaboração do Despacho 4410/2020, entre outros fatos.
“Querem transformar o STF num consultor jurídico do governo, reduzi-lo a um carimbador do Ministério da Agricultura. O Governo, que não teve força para fragilizar as regras de proteção ambiental, está pedindo para o Supremo concluir a tarefa”, critica Mario Mantovani, diretor de políticas públicas da SOS Mata Atlântica.
“Do ponto de vista jurídico, a ADI sequer poderia ter sido proposta. Pediram para o STF validar o Despacho 4410, mas no dia seguinte o revogaram. Ações diretas não tratam de atos revogados”, explica o advogado Rafael Giovanelli, do WWF-Brasil. “Além disso, a ADI propõe uma discussão entre duas leis, e não entre uma lei e a Constituição Federal. O STF só poderia agir se houvesse uma relação direta com a Constituição. Essa relação não foi demonstrada na ADI”, complementa.
Erika Bechara, assessora jurídica da SOS Mata Atlântica, lembra ainda que o STF recentemente sedimentou o entendimento de que os danos ambientais devem ser reparados, independentemente do momento em que foram causados. “Para o STF, a ação para exigir a reparação de danos ambientais não prescreve, isto é, não importa quando o dano foi causado, se foi ontem, ano passado ou há trinta anos, o causador precisará recuperar o meio ambiente. Sendo assim, não há qualquer justificativa para legalizar os desmatamentos feito em desrespeito às regras de proteção da Mata Atlântica”, comenta Erika.
As organizações argumentam que, em razão da grande experiência acumulada e conhecimento produzido nos muitos anos de atuação na área ambiental, elas podem oferecer um conjunto de informações e argumentos úteis para resolução da controvérsia no STF.
O pedido das ONGs incluiu também notas técnicas do Observatório de Governança das Águas (OGA) e do Mapbiomas, que mostram o impacto para a questão hídrica, para as atividades agrícolas e a extensão das áreas que deixariam de ser restauradas se a Lei da Mata Atlântica não for cumprida integralmente.
“A Mata Atlântica é o primeiro bioma brasileiro que conta com uma lei específica, uma espécie de camada especial de proteção, que precisa ser respeitada para que o bioma permaneça vivo”, diz João de Deus Medeiros, biólogo, professor da Universidade Federal de Santa Catarina e coordenador Geral da Rede de ONGs da Mata Atlântica.
Os advogados das organizações argumentam que a ação do governo busca revogar parte de um regime jurídico de especial proteção do bioma Mata Atlântica que está vigente desde 1990 e que não admite a consolidação do desmatamento ilegal.
Boiada
Na reunião ministerial de 22 de abril, divulgada posteriormente por decisão judicial, o ministro Ricardo Salles, do Meio Ambiente, sugeriu que se aproveitasse o momento em que “a atenção da imprensa tá voltada exclusivamente … quase que exclusivamente pro COVID” para “passar as reformas infralegais de desregulamentação, simplificação…”. Segundo o ministro, era preciso “um esforço nosso aqui [isto é, do Governo Federal] enquanto estamos nesse momento de tranquilidade no aspecto de cobertura da imprensa, porque só fala de COVID, e ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”. Ele admitiu na reunião gravada que tinha como objetivo “simplificar a Lei da Mata Atlântica”, “a pedido do Ministério da Agricultura”.
Passivo ambiental
Nota técnica redigida por Marcos Reis Rosa e Tasso Azevedo, respectivamente coordenador técnico e coordenador geral do MapBiomas, afirma que foram identificados 329,7 mil hectares de áreas desmatadas em Área de Preservação Permanente (APP) entre 1990 e 2008 em propriedades privadas, que devem ser recuperadas de acordo com a Lei da Mata Atlântica, e que poderiam deixar de ter essa obrigação de acordo com despacho do Ministério do Meio Ambiente.
A maioria é de APP hídrica. O total de área que poderia ser anistiada representa 0,41 % da área total das propriedades rurais e 2,46 % das Áreas de Preservação Permanente analisadas na Mata Atlântica. Esse espaço de APP que sofreu supressão de vegetação após 1990 e que se encontra atualmente com ocupação agrícola corresponde a 42 mil hectares, o que equivale a 0,1% da área de cultivo no bioma.
“É inaceitável que o governo queira descaracterizar a Lei da Mata Atlântica para beneficiar alguns poucos criminosos, em vez de se preocupar em valorizar quem cumpre a legislação, que é a grande maioria dos produtores rurais”, afirma Mantovani, diretor de Políticas Públicas da SOS Mata Atlântica.
Já a nota técnica do OGA apresenta estudos de caso e dados sobre a importância da Mata Atlântica e da vegetação nativa para promover segurança hídrica e serviços ambientais à sociedade. O documento lembra do deslizamento na região serrana do Rio anos atrás e cita estudo que analisou a região e concluiu que, do total de desmoronamentos ocorridos, 92% ocorreram em áreas alteradas pelo homem – somente 8% ocorreram em áreas com vegetação nativa bem conservada.
A nota afirma ainda que a Sabesp, responsável pelo abastecimento de água na Região Metropolitana de São Paulo, calcula que a restauração de 4 mil hectares de florestas na bacia do Sistema Cantareira conseguirá reduzir em até 36% o aporte de sedimentos nos rios que formam os reservatórios. Com isso, reduzirá operações de dragagem e o uso de produtos químicos para tratar a água.
Em 30 anos, esse investimento em infraestrutura verde representa uma economia de US$ 69 milhões, com um retorno de investimento de 28%, compatível com obras de infraestrutura tradicionais do setor de abastecimento.
O OGA reforça ainda que o Brasil se comprometeu no Acordo de Paris com uma meta de restauração florestal – recuperar 12 milhões de hectares até 2030 – e que a proteção da Mata Atlântica é vital para segurança hídrica e resiliência climática.