Opinião

Secas e cheias mais que dobraram no Brasil entre 2014 e 2023

Por José Marengo e Carlos Nobre

O ano de 2023 foi o mais quente da história no Brasil e no mundo e parece que 2024 vai na mesma direção. De acordo com o relatório da OMM (Organização Meteorológica Mundial), em 2023 a temperatura média global próxima da superfície ficou 1,45 °C acima da linha de base pré-industrial de 1850-1900. Dados do Copernicus (Serviço Europeu sobre Alterações Climáticas) apontam que maio de 2024 foi 1,58 °C mais quente do que a linha de base pré-industrial. Paralelamente ao aumento da temperatura, extremos de chuva também aconteceram e a maioria desses extremos já têm sido atribuídos cientificamente a mudanças climáticas antrópicas – ou seja, causadas pelo homem.

O atual evento El Niño, que se encontra em sua fase final, levou a recordes de temperatura em várias partes do planeta, especialmente no verão do hemisfério Norte, também porque o norte do oceano Atlântico está com recordes de temperatura.

Na América Latina, um relatório de 2023 da OMM sobre o Estado do Clima na América Latina e no Caribe, aponta que, para a região, com base em informações do banco de dados de eventos de emergência do Centro de Pesquisa em Epidemiologia de Desastres da Bélgica, foram notificados 67 extremos meteorológicos e hidrológicos. Desses 67 eventos, 77% foram tempestades e eventos relacionados com inundações e foram responsáveis por 69% das 909 mortes documentadas nesta base de dados. Os prejuízos econômicos estimados em US$ 21 bilhões comunicados ao centro foram principalmente devido a tempestades (66%). Ou seja, inundações foram os desastres mais caros e que mataram muitas pessoas.

Entre 1998 e 2017, as inundações afetaram mais de 2 bilhões de pessoas em todo o mundo. Elas podem causar devastação generalizada, resultando na perda de vidas e em danos a bens pessoais e infraestruturas críticas de saúde pública, e, segundo a OMM, as inundações causam mais de US$ 40 bilhões em danos todos os anos em todo o mundo.

No Brasil, dados analisados pela CNM (Confederação Nacional de Municípios) apontam que 93% dos municípios brasileiros foram atingidos por algum desastre climático que levou ao registro de emergência ou estado de calamidade pública, especialmente por tempestades, inundações, enxurradas ou alagamentos nos últimos 10 anos. No período de 2013 a 2022, mais de 2,2 milhões de moradias foram danificadas em todo o país por causa desses eventos, afetando diretamente mais de 4,2 milhões de pessoas, que tiveram de deixar suas casas em 2.640 cidades do país.

As enchentes e inundações têm sido recorrentes no Brasil devido a questões naturais, sociais e climáticas. Os municípios da região Sul somam o maior percentual de casas afetadas (46,79%), sendo 1 milhão de locais danificados e 54.559 destruídos, representando prejuízo financeiro de cerca de R$ 4 bilhões – 15,22% do total. As perdas causadas pelas chuvas no Brasil já geraram prejuízos de R$ 55,5 bilhões entre 1º de outubro de 2017 e 17 de janeiro de 2022, segundo estudo da CNM.

Um relatório recente do Serviço Geológico do Brasil mostra que secas e cheias mais que dobraram de 2014 a 2023 em relação aos dez anos anteriores. De 2014 a 2023, foram 314 episódios de cheias, contra 182 nos dez anos anteriores. Foram 406 episódios de secas que atingiram o Brasil de 2014 a 2023, sendo 92 durante o período anterior. A maior cheia na Amazônia ocorreu em 2021 e seis das suas maiores cheias foram nos últimos dez anos, sendo que a pior seca aconteceu em 2023 e se prolongou até 2024. O Brasil teve 16 recordes de cheias e 651 de secas entre 1927 e 1959, e, no período mais recente, de 1992 a 2023, foram 642 recordes de cheias e 600 de secas, sendo estas mais extremas que nas décadas anteriores. O mais recente relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima) de 2021-2022 revisou vários estudos e aponta que as mudanças climáticas estão por trás da alteração nos regimes de chuvas em todo planeta.

Em maio de 2024 chuvas intensas afetaram a maior parte do Rio Grande do Sul e deflagraram o que é considerado o maior desastre climático na história republicana do Brasil, com 172 mortos e bilhões de reais em perdas econômicas. As chuvas abundantes causaram inundações em várias cidades e os rios Taquari, Caí, dos Sinos e das Antas aumentaram os seus níveis em vários metros, inundando cidades e impactando as populações, o que gerou uma onda que elevou em mais de 5 metros o nível do Guaíba. Com isso, vários bairros de Porto Alegre foram inundados, culminando na considerada pior enchente da história do estado, ultrapassando o extremo de 1941, quando o rio atingiu a marca de 4,76 metros em 8 de maio de 1941. No dia 5 de maio de 2024, essa marca foi superada e o Guaíba atingiu 5,35 metros. Enchentes também foram registradas no Uruguai e no norte da Argentina.

Anteriormente, Em setembro de 2023, devido à ação conjunta entre El Niño e aquecimento global, chuvas intensas afetaram o Vale do Taquari no Rio Grande do Sul e deflagraram enchentes que mataram mais de 50 pessoas.

O aquecimento em 2023, causado pelos gases do efeito estufa (GEE), amplificado pelas condições do El Niño, determinou ondas de calor mais longas e severas e períodos prolongados de seca. Em 2023, ondas de calor afetaram Canadá, Índia, Europa e Japão com temperaturas recordes.

No Brasil, foram 9 ondas de calor em 2023. Na última década, houve um aumento de quase sete vezes na incidência de ondas de calor. Elas também estão cada vez mais longas: a mais recente durou mais de dez dias. Em maio de 2024, uma onda de calor fez com que cidades do centro-oeste e sudeste do Brasil registrassem até 8 °C acima da temperatura média. Análises Copernicus apontam que até o momento 2024 está sendo mais quente que 2023. Entre março e maio de 2024, temperaturas recordes maiores que 50 °C foram detectadas em episódios de ondas de calor na Índia onde foram registrados quase 25 mil casos de insolação e 56 pessoas morreram após vários dias de calor extremo no país.

Estudos desenvolvidos por grupos internacionais mostram que os brasileiros enfrentaram quase três meses a mais de dias quentes nos últimos doze meses por causa das mudanças climáticas em 2023 e 2024 em comparação com a média de décadas anteriores. Eventos extremos compostos de calor e seca afetaram a Amazônia de setembro até dezembro de 2023, e a falta de chuvas com 6 ondas de calor aumentaram o número de queimadas e afetaram o bioma Amazônia e as comunidades indígenas vulneráveis.

Esses aumentos nos extremos são consequência do aquecimento global, que é causado pelos gases de efeito estufa (GEE) que retêm o calor da radiação térmica na atmosfera. Esses gases, como o CO2 (gás carbônico), são liberados com a queima de combustíveis fósseis, como carvão, petróleo e gás natural. Em 2023, as concentrações desses gases na atmosfera atingiram níveis sem precedentes. De 1960 até 2024 a concentração observada de CO2 subiu de 316 ppm (partes por milhão) para 426,90 ppm em maio deste ano. As maiores taxas da média anual de crescimento do CO2 ocorreram nas décadas mais recentes.

O sexto relatório do IPCC de 2021-2022 enfatiza que não há dúvidas que foram as atividades humanas que aqueceram o planeta. Mudanças rápidas e generalizadas ocorreram no clima recente e alguns impactos estão agora se concretizando. A ciência de atribuição encontrou evidências do impacto da ação humana em todo sistema climático. As emissões antrópicas são agora responsáveis por um planeta alterado e com clima mais instável. O planeta aquecerá em 1,5 °C em todos os cenários de projeções: mesmo atingindo a meta mais ambiciosa do Acordo de Paris de reduzir em quase 50% as emissões de GEE até 2030, alcançaremos 1,5 °C permanentemente por volta deste ano.

No curto prazo é necessário combater outros GEE além do CO2. As emissões de metano são preocupantes. Evidências de mudanças observadas nos extremos climáticos em todas as regiões do planeta, como forte precipitação, ondas de calor, secas e intensos ciclones tropicais e, em particular, sua atribuição à ação antrópica, fortaleceram-se desde o relatório anterior de 2013. A menos que haja reduções imediatas, rápidas e em grande escala nas emissões de GEE, implementar em grande escala remoção de CO2 da atmosfera, com, por exemplo, restauração de florestas, limitar o aquecimento de 1,5 °C pode ser impossível.

*José Marengo e Carlos Nobre são cientistas reconhecidos internacionalmente pela notória atuação na área climática.

Fonte: Ecoa Uol