Opinião

Seres humanos x tubarões: Quem é que mais come quem nessa história?

*Beatriz Mattiuzzo

Do ataque fatal a um banhista no Egito às teorias conspiratórias de monstros marinhos que ganharam força com o sumiço do submersível do Titanic, tubarões voltaram para as telas e rodas de conversa nossas de cada dia.

Mas, ainda que desaparecessem das notícias e do nosso imaginário, eles dificilmente desapareceriam do prato dos brasileiros.

O Brasil é o maior consumidor de carne de tubarão em todo o mundo. Mas um detalhe faz com que a maioria das pessoas nem saiba disso, nem que pode ter comido um no almoço de ontem. Isso porque por aqui essa carne é vendida com o nome de cação.

Não há diferença entre cação e tubarão, mas a nossa experiência mostra que fica muito mais fácil de engolir, literalmente, quando se usa um outro nome.

Mas a relação de nós, brasileiros, com um dos animais mais temidos do mar nem sempre foi assim.

Apesar de os tubarões serem pescados e consumidos há muito tempo pelas comunidades tradicionais, o interesse comercial e em grande escala é recente, vem de poucas décadas. Em grande parte, impulsionado pelo mercado internacional. E é aí que a gente entra em uma história cada vez mais sinistra.

É possível que uma outra notícia envolvendo tubarões tenha passado despercebida: No mês passado, o Ibama apreendeu 28,7 toneladas de nadadeiras, a maior apreensão da história, sendo a maior parte em Santa Catarina (27,6 ton) e uma pequena fração em São Paulo (1,1 ton). A quem interessa tantas toneladas de nadadeiras de tubarão?

Nadadeiras, muitas vezes chamadas pelo nome popular de barbatanas, são consideradas iguarias de alto valor no mercado internacional, principalmente nos países asiáticos. Com elas é feita uma sopa, prato de baixíssimo valor nutricional, mas ligado ao status social da elite em alguns países.

O item é uma das mercadorias de animais mais valiosas do mundo, ao lado do marfim do elefante e do chifre de rinoceronte. A depender da raridade do tubarão, chega a valer 5 mil dólares o quilo. Ou seja, quanto mais em risco de extinção, mais valioso ele é.

O valor comercial das nadadeiras é tão maior que o do “resto” dos tubarões que deu origem a uma prática chamada “finning”, que consiste na pesca apenas para a remoção das nadadeiras.

Pescar apenas as nadadeiras é bem mais interessante comercialmente, não só por elas valerem mais, mas por pesarem menos, liberando mais espaço no barco.

Mas e o corpo do tubarão? O animal mutilado é devolvido ao mar. E como esses animais precisam nadar constantemente para a água passar por suas brânquias e respirarem, eles acabam morrendo sufocados.

Por ser uma prática tão cruel, o finning foi proibido em diversos países, inclusive por aqui, mas o comércio das nadadeiras, em si, não é ilegal nem no Brasil, nem no mundo.

Na maioria das vezes, as leis exigem que o tubarão chegue inteiro no porto de desembarque, onde as barbatanas podem ser separadas da carcaça. Uma vez que o comércio das mesmas continua legalizado e lucrativo, o que aconteceu na prática foi que começaram a “sobrar” carcaças de tubarão.

E o que fazer com toda essa carne? Vender para os poucos países que consomem o animal, casos do Brasil e do México. E foi assim que nos tornamos não só o maior consumidor de carne de tubarão do mundo, mas também o maior importador.

O próprio carregamento recorde que virou notícia não foi apreendido por se tratar de nadadeiras, já que isso não é um crime em si, mas sim por uma série de outras ilegalidades que vão de espécies ameaçadas de extinção a ausência das licenças necessárias.

As quase 29 toneladas de nadadeiras correspondem a mais de 10 mil tubarões mortos: pode parecer muito, mas, mundialmente, estima-se que sejamos responsáveis por matar 11 mil tubarões por hora, e 100 milhões de tubarões por ano.

Nós brasileiros contribuímos para essa estatística toda vez que consumimos cação, ainda que na grande maioria das vezes desavisados e até pensando fazer uma boa escolha, já que é “peixe é mais saudável”.

E nem isso é verdade, no caso, nem para nós nem para a natureza, já que a carne de cação (tubarão) possui altas concentrações de metais pesados como arsênio e mercúrio, ambos altamente prejudiciais à saúde humana e ligados à câncer e sérias consequências neurológicas.

Afinal, havia de ter algo estranho para países de “primeiro mundo” não terem interesse nessa carne toda de tubarão, não é?!

No fim, tubarões são responsáveis por apenas 10 mortes humanas por ano na média, um número muito menor que outros animais selvagens, como crocodilos (cerca de 1000 mortes/ano) e hipopótamos (500 mortes/ano), e exponencialmente menor do que os 100 milhões de tubarões que nós matamos.

Talvez por culpa dos filmes hollywoodianos ou por sabermos ser tão ineficientes na água, é fato que os tubarões dominam nosso imaginário. Mas, ao olhar racionalmente para os números, fica bem claro quem come quem.

*Beatriz Mattiuzzo é oceanógrafa, mestranda em Práticas de Desenvolvimento Sustentável, instrutora de mergulho e cofundadora da Marulho, negócio socioambiental que intercepta redes de pesca junto a pescadores locais em Angra dos Reis.

Fonte: Ecoa