Políticos brasileiros nos brindam com mais uma traição com Marco Temporal
* Trudruá Dorrico
Saúdo a todos os parentes e aliados que lerão esta carta. Sou Trudruá Dorrico, makuxi e brasileira.
Este texto que também será um encontro é para falar de tempo.
E se o que está em julgamento é o tempo, gostaria de lembrar ao Supremo Tribunal Federal e à toda sociedade brasileira que nós entendemos de tempo e espaço, desde os ancestrais até os políticos, este último que temos precisado enfrentar desde 1500.
Lutamos pelos tempos e espaços políticos para que possamos celebrar a memória das primeiras gentes, dos territórios que se estendem para além das linhas imaginárias a que fomos divididos, e que agora, querem tirar de vez de nós.
A colonização portuguesa, espanhola, holandesa, francesa, todas, diga-se de passagem, contra os povos indígenas legou ao povo brasileiro a falsa noção de tempo cronológico, linear, histórico e moderno, mesmo chegando aqui sem pedir licença.
Ao estabelecer Marcos Temporais perpetuou um paradigma estranho às nossas vidas. Essa linha do tempo, esse paradigma colonial, ainda intenta contra nosso direito à autodeterminação.
O Marco Temporal viola nosso direito à autodeterminação, pois o artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas diz que em virtude desse direito podemos determinar livremente nossa condição política e buscar livremente nosso desenvolvimento econômico, social e cultural. Mas não poderemos sonhar com tudo isso se não temos nosso direito primário e antigo, à terra.
O Brasil está celebrando novamente ter reavido a democracia, mas nós indígenas experimentamos um átimo de democracia por 134 dias, no período que foi criado o Ministério dos Povos Indígenas, dia 11 de janeiro de 2023, até o esvaziamento da nossa autodeterminação dia 24 de maio de 2023.
Há um tempo o STF parece desconhecer ou ignorar a própria história do país. Eu como pesquisadora indico a obra do parente Davi Kopenawa, “A queda do céu: palavras de um xamã yanomami” para ciência de como a Ditadura Militar buscou se apropriar das terras Yanomami e Kinja, bem como adoeceu e gerou depopulação por onde passou.
Ainda indico a obra “Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígenas na Ditadura Militar”, do jornalista Rubens Valente, escrita a partir do Relatório Figueiredo que denunciou em detalhes a remoção de diversos povos de seus territórios tradicionais financiadas, geridas e fiscalizadas pelo próprio Estado, que aliás nunca se desculpou formalmente a ponto de mudar as estruturas sociais que nos expulsam dos lugares, nos torna impotentes e nos diminui.
O meu trabalho é ser escritora, artista e pesquisadora, mas não tenho podido cultivar minhas faculdades, já que sou interpelada, somos, a correr em defesa do que deveria já estar garantido desde 1988.
Sonho com um tempo de liberdade e paz, um dia que não seremos ameaçados, oprimidos, aviltados e, ainda, exigidos, com audácia, de desempenharmos uma vida compatível a uma sem violências.
Sonho com um tempo de liberdade e paz, um dia que não seremos ameaçados, oprimidos, aviltados e, ainda, exigidos, com audácia, de desempenharmos uma vida compatível a uma sem violências.
Para finalizar, falamos de tempo, do tempo político de 5 de outubro de 1988, mas se eu pudesse colocar de outra forma, da nossa forma, diria que
1500
1757
1850
1910
1916
1928
1964
1967
1973
1988
2019
2023
todas essas datas representam projetos ao longo do tempo histórico e colonial leis que fingiram se preocupar com a nossa existência no país. O Marco Temporal é um projeto político, antidemocrático, que como declarou o parente Maurício Terena, não tem precedente jurídico na frágil legislação brasileira.
Falamos de tempo. Nossas sociedades conhecem outros tempos e fronteiras, que nunca prejudicaram ou puseram em risco a vida dos não indígenas, pelo contrário, permitiu que os Estados-nação continuassem com seus sonhos de futuro e mercadoria. Nossos avós contam histórias de tempos também.
Histórias de fundações do mundo, das origens da banana, do jerimum, por que dançamos parixara e nossos costumes. Contam história do tempo de gente que virou planta para nos curar, os pemonkon, a gente verdadeira.
Esse tempo é que deveria importar ao país, esse que está sendo ameaçado mais uma vez. Aos brasileiros que dizem que este é um tempo de democracia nós dizemos, como Denilson Baniwa declara, democracia é demarcar todas as terras indígenas.
* Trudruá Dorrico é Trudruá Dorrico é doutora em teoria da literatura na PUC-RS. Autora da obra “Eu sou macuxi e outras histórias” (Caos e Letras, 2019) que venceu o 1º Lugar no Concurso Tamoios de Novos Escritores Indígenas, promovido pelo Instituto UK’A e Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ, 2019).
Fonte: Ecoa