Dívida Ecológica
*Gilberto Natalini
**Marcus Eduardo de Oliveira
Agimos como se o planeta não tivesse limites ecológicos e fosse realmente capaz de suportar todo tipo de lixo e rejeito que a produção excessiva e a acumulação sem fim do capital acarretam.
Nesses tempos dolorosos que vivemos, os fatos objetivos falam por si. Do ponto de vista ambiental, já atingimos um ponto crítico: a capacidade biofísica do mundo natural está comprometida devido a nossas ações (quase sempre, insustentáveis); quer dizer, o jeito como nos apoiamos nesse mundo e o modo econômico que assumimos para dar resposta aos nossos anseios de prosperidade.
E como tudo tem consequência direta e imediata, não percamos a visão do todo: as mudanças ecológicas e climáticas que estamos passando refletem no desequilíbrio da cadeia ecológica que rege a vida na Terra, impactando severamente a sustentabilidade do planeta.
Dura realidade, sobram exemplos de como estamos perdendo o controle do mundo, em meio ao desmonte ambiental, na Era do Antropoceno. Segundo os glaciólogos, o gelo está derretendo a uma velocidade três vezes maior do que eles temiam apenas dez anos atrás; na Antártica, o derretimento é seis vezes mais rápido do que há 40 anos.
Não é exagerado dizer que danos causados por enchentes vão aumentar de cem a mil vezes até o final deste século. E não custa lembrar aqui, para todos os efeitos, que dois terços das maiores cidades do mundo estão a centímetros do nível do mar.
Até 2030, de acordo com pertinentes denúncias dos oceanógrafos, o aquecimento e a acidificação dos oceanos ameaçarão 90% de todos os corais que sustentam pelo menos um quarto de toda a vida marinha. E tem mais: de acordo com os especialistas em gestão pública, quase metade da população mundial, em 2025, passará pelo menos um dia da semana por falta d´água.
Nos dias de hoje, informa o Programa Conjunto de Monitorização da OMS/UNICEF para o Abastecimento de Água e Saneamento, pelo menos 1,8 milhão de pessoas em todo o mundo continuam bebendo água que não está protegida contra a contaminação das fezes.
Tão trágico quanto esse específico drama de saúde pública, até 2050 o mundo conhecerá 200 milhões de refugiados do clima, informa o relatório do Internal Displacement Monitoring Centre.
E a lista de “desajustes” continua. Desde o surgimento do Homo sapiens, nada menos que 83% dos mamíferos selvagens desapareceram da face do planeta, assim como 80% dos mamíferos marinhos, 50% de plantas e 15% de peixes.
A velocidade com que acontece a perda de biodiversidade é assustadora. Se antes de os humanos entrarem em cena e ocuparem o centro das atenções o ritmo de extinção era de uma espécie a cada 10 milhões, hoje em dia já se sabe que a ação humana (antropocentrismo dominador, chamemos assim) acelerou em mil vezes a taxa de extinção das espécies de plantas e animais do planeta, em comparação com a taxa natural.
Os números conhecidos causam estarrecimento: nada menos que 30% das espécies poderão desaparecer até a metade do corrente século.
Quem se dispuser ao trabalho e consultar a Lista Vermelha de Espécies Ameaçadas (Red List ou Red Data List) notará, por exemplo, que 40% de anfíbios, 34% de coníferas, 33% de recifes de coral, 31% de tubarões e raias, 27% de crustáceos selecionados (incluindo lagostas, camarões, lagostins e caranguejos de água doce), 25% de mamíferos e 14% de pássaros correm risco de desapareceram de nossas vistas.
O cenário diante de nós é de tragédia. De modo perturbador, Edward Wilson (1929-2021) chamou a nossa atenção para um ponto devastador: “a cada 13 minutos uma espécie da biodiversidade desaparece de nossas vistas devido a nosso estilo de vida depredador e consumista”.
Fora isso, não é segredo algum que produtos químicos têm afetado extensas áreas agrícolas, tirando com facilidade a fertilidade da terra em diferentes pontos do planeta. Nos dias atuais, mais de 30% dos solos do mundo já estão degradados e já se sabe que a desertificação, devido a climas secos e quentes e a ação antrópica, afeta quatro bilhões de hectares no mundo, ou 25% da massa terrestre.
Traço preocupante, enquanto continuamos pensando apenas no plano meramente econômico (sempre com vistas ao aumento de produção e consumo), estamos indo além da civilização, colocando em risco as fundações ecológicas da sociedade.
O desmatamento da Amazônia, para tocar em um de nossos pontos mais sensíveis, apresenta forte impacto climático. O detalhe realmente apavorante aí, principalmente em termos de possíveis novas pandemias, como não cansam de dizer os cientistas, é que isso pode liberar outros vírus e bactérias que hoje vivem em equilíbrio no ecossistema da Amazônia.
E ainda assim a sociedade humana segue sua jornada de desleixo em relação ao planeta. No fundo, achamos que tudo em matéria de recursos é inesgotável, ou que o problema ambiental é de fácil resolução. De todo carbono estocado na atmosfera, 75% foram emitidos apenas nas últimas sete décadas.
O uso mundial de água triplicou nos últimos 50 anos. Entre 1940 e 1990, o consumo saltou de 400 para 800 metros cúbicos por pessoa por ano. Conta simples de entender: hoje em dia os 7,7 bilhões de habitantes do planeta já consomem 80% dos recursos de água doce natural. No detalhe: “Só restam 8 mil metros cúbicos de água potável por habitante e por ano, contra 15 mil metros cúbicos de 1990”.
Definição representativa, na era contemporânea seguimos deteriorando os reservatórios de água subterrânea; da mesma forma como comprometemos a biodiversidade dos leitos marítimos polares. Em menos de duas décadas, três milhões de quilômetros cúbicos de gelo dos oito que existiam no Pólo Norte simplesmente desapareceram. As geleiras da Groenlândia, segunda fonte de água doce do planeta, diminuem muito rápido.
Esquema definido, no que tange a expansão da economia global, seguimos firmes na crença de que a produção material é tudo o que nos resta. O mundo inteiro já usa hoje em dia cerca de 150 toneladas por segundo de cimento, um dos termômetros da atividade econômica e, de longe, o material mais consumido no planeta.
A produção mundial de aço bruto, somente em 2021, de acordo com dados da World Steel Association, alcançou 1,95 bilhão de toneladas. O número de veículos, leves e pesados, que hoje circulam em todas as cidades do mundo já alcança a impactante marca de 1 bilhão de unidades; em 1950, eram apenas 50 milhões de unidades em todo o mundo.
Em 2019, o mundo produziu 460 milhões de toneladas de plásticos, produto que responde por 3,4% das emissões globais. Acontece que cerca de 22% desse produto são deixados em aterros ilegais ou abandonados na natureza, enquanto 13 milhões de toneladas chegam aos oceanos todos os anos, levando 100 mil animais marinhos à morte.
Situação emergencial, para continuar fazendo aqui rápida síntese, faz tempo que entramos numa preocupante zona de perigo, com sérias ameaças ao jogo da sobrevivência da nossa própria vida.
Agravada pela baixa preocupação ambiental, toda a humanidade se vê diante do maior desafio de todos os tempos: organizar o esforço comum e vencer as mudanças climáticas, cada vez mais tangíveis.
Para tanto, é preciso uma radical mudança de hábitos e costumes, até mesmo porque um rápido balanço mostra o seguinte: se nos dias de hoje a humanidade está usando 1,4 planeta, ou seja, faz uso de 140% da terra disponível, ultrapassando assim a capacidade da Terra, tudo indica que em 2030 estará operando o equivalente a dois planetas, algo inimaginável dentro dessa atual sociedade da mercadoria.
Em um desdobramento dessa perspectiva, pode-se pensar, como ideia central, que a noção de colapso ambiental tem tudo a ver com a racionalidade produtiva, já impregnada na cultura moderna que reiteradamente desdenha dos limites físicos (limites de sustentabilidade) do planeta.
Todavia, levando as consequências ao extremo, o fato é: para bancar o crescimento, a abundância exagerada (transformada em política de vários governos) e a reprodução do modo de vida dominante, chegamos num estágio em que “estamos vivendo do capital da Terra”, como esclarece Pavan Sukdev.
Em outros termos, agimos como se o planeta não tivesse limites ecológicos e fosse realmente capaz de suportar todo tipo de lixo e rejeito que a produção excessiva e a acumulação sem fim do capital acarretam.
De toda sorte, diante da extrema necessidade de se reconhecer os Direitos da Natureza (em letras maiúsculas para assim expressar sua relevância), estamos sendo constantemente induzidos a prestar menos atenção na reprodução da vida, e muito mais na do capital e de seu discurso sedutor, o crescimento econômico ininterrupto.
Isso significa dizer abertamente que, enquanto potencializamos a dívida ecológica em todos os sentidos, fingimos não acreditar que “nosso problema é o crescimento físico em um mundo finito”, como escreveu Dennis Meadows.
À parte isso, a história vai nos deixando uma lição cara: “(…) com base na melhor informação científica disponível, mantida a via atual, a qualidade da vida humana sofrerá substancial degradação por volta de 2050”.
*Gilberto Natalini é médico cirurgião, vereador por cinco mandatos na Câmara Municipal de São Paulo. Foi Secretário Municipal do Verde e do Meio Ambiente (2017), e candidato à Governador do Estado de São Paulo, pelo Partido Verde, em 2014.
**Marcus Eduardo de Oliveiraé economista (1994), pós-graduado em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (1995) e ativista ambiental. Mestre em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (USP). Autor de Civilização em Desajuste com os Limites Planetários (CRV, 2018), entre outros.
Fonte: EcoDebate