Opinião

Controle e censura de pesquisas do ICMBio prejudicam ciência, ambiente e sociedade

*Por Coalizão Ciência e Sociedade

É imperativo que os servidores do instituto tenham liberdade para conduzir e divulgar pesquisas essenciais ao cumprimento de sua missão institucional.

Criado em 2007, o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) representou a união de duas importantes missões para a conservação do patrimônio natural do povo brasileiro. A criação do órgão permitiu combinar a produção de conhecimento científico sobre a biodiversidade nas unidades de conservação (UCs) com sua aplicação direta nas ações de gestão.

Hoje, o instituto tem sob sua responsabilidade 334 UCs federais distribuídas em todos os biomas brasileiros – Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal, e também em ecossistemas marinhos. Além das unidades de conservação, o ICMBio administra 14 Centros de Pesquisa e Conservação e nele estão lotados analistas ambientais responsáveis por pesquisas com a biodiversidade brasileira, incluindo desde espécies ameaçadas até o patrimônio espeleológico e a sociobiodiversidade de populações tradicionais.

A integridade da missão do ICMBIo, em sua intrínseca conexão com a pesquisa científica conduzida por seus servidores, vê-se agora ameaçada por meio da Portaria nº 151, de 10 de março de 2021, do ICMBio (Diário Oficial da União de 12/03/2021), segundo a qual, a partir de 1º de abril, todos os “manuscritos, textos e compilados científicos produzidos no âmbito e para este Instituto em periódicos, edições especializadas, anais de eventos e afins” deverão ser previamente avaliados pelo Diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do ICMBio, cargo atualmente ocupado por Marcos Aurélio Venâncio, tenente-coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Essa não é a primeira tentativa de controle da condução e difusão de pesquisas científicas na área ambiental no Brasil desde 2019. Um caso precedente com grande repercussão foi a proibição da divulgação dos dados de desmatamento pelo INPE, que culminou com a exoneração de seu diretor, o respeitado e renomado pesquisador Dr. Ricardo Galvão. O processo ganhou as manchetes no Brasil e no mundo e evidenciou a frustrada tentativa de desacreditar o cientista e a instituição.

Dentre as mais importantes conquistas da Constituição de 1988, destaca-se a liberdade de expressão, principalmente contemplada no inciso IX do artigo 5º, que estabelece:

É livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.

Essa conquista resultou de um longo, sofrido e complexo processo de abertura democrática do país para restabelecer os direitos fundamentais dos cidadãos, que haviam sido suprimidos durante o regime militar, e propiciar uma vida livre, igualitária e digna a todos os brasileiros. Essa conquista veio em oposição à censura que, ao contrário do que é estabelecido pelo inciso IX, se caracteriza pela apropriação do Estado da função de definir que expressões serão permitidas ou proibidas.

A submissão e controle da pesquisa científica é particularmente paradoxal em uma autarquia em regime especial como o ICMBio, cujo marco legal confere maior autonomia para o pleno desempenho de suas finalidades específicas. Ademais, toda publicação científica genuína tem meios próprios de validação da qualidade e veracidade dos dados, informações, análises e conclusões – esse procedimento é feito por meio da revisão e análise crítica por outros especialistas competentes e anônimos (a chamada “revisão por pares”). Esse sistema é mundialmente reconhecido e adotado pelas melhores revistas científicas nacionais e internacionais. Diante de um processo aberto e transparente de avaliação da qualidade do trabalho científico, quais são as razões para que dados que vão ser submetidos para publicação devam ser previamente avaliados pelos dirigentes do ICMBio? Quais serão os critérios e prazos de avaliação? Há temas vetados nas publicações?

A ciência tem compromisso com a verdade inferida com base em dados e experimentos sobre fenômenos naturais, e não deve ser sujeita a correntes políticas, interesses partidários ou individuais. Em particular, ao responder pela gestão de um patrimônio do qual todos dependemos e que será nosso legado para as novas gerações, é imperativo que os servidores do ICMBio tenham liberdade para conduzir e divulgar pesquisas essenciais ao cumprimento de sua missão institucional.

Essa portaria abre precedente para outras ações similares, que podem culminar com a imposição de formas obscuras e nefastas de controle sobre outras instituições importantes para a ciência brasileira. Cabe ressaltar que há uma saudável e contínua interação entre técnicos e pesquisadores do ICMBio e de instituições acadêmicas por meio de cursos de pós-graduação e especializações e de projetos cooperativos que geram publicações conjuntas, com as quais se amplia a base científica das ações para a conservação da biodiversidade e do ambiente.

Destacam-se projetos financiados por agências do governo (CNPq, Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa), executados em unidades de conservação (como sítios do programa Pesquisa Ecológica de Longa Duração – PELD), os quais se valem de dados de monitoramento e da colaboração do ICMBio e, por sua vez, produzem resultados e análises inestimáveis para o próprio Instituto e os gestores de UCs. Mais além, vários analistas ambientais estão regularmente matriculados em mestrados e doutorados em programas de pós-graduação, em que a publicação de suas pesquisas faz parte dos requisitos para a obtenção desses títulos. Dessa maneira, as consequências negativas da Portaria nº. 151 não se restringem aos servidores do ICMBio, mas repercutem, em médio e longo prazo, para toda a ciência, ambiente e sociedade.

No enfrentamento da pandemia da Covid-19 revela-se novamente a qualidade dos cientistas brasileiros, mesmo com a escassez de apoios financeiro e logístico e a evasão de profissionais, que se agravaram muito nos últimos anos. Implementar controles prévios à divulgação de resultados científicos de interesse da sociedade, produzidos por técnicos e pesquisadores de órgãos públicos fomentará o retrocesso e descrédito da ciência brasileira que, apesar de todos percalços, ainda é respeitada no país e no exterior.

Um país só pode se desenvolver plenamente com apoio e respeito aos seus cientistas e aos três pilares da pesquisa científica: coleta de dados, análises e divulgação dos resultados. Liberdade e transparência caminham juntas e alicerçam a credibilidade da ciência. Da mesma forma, ciência e democracia se sustentam mutuamente por meio da busca imparcial de conhecimento e de sua ampla difusão junto à sociedade.

A Coalizão Ciência e Sociedade congrega cientistas de instituições ensino e pesquisa em todas as regiões do Brasil.
Fonte: Direto da Ciência