Opinião

Conhecimento de povos da floresta pode revolucionar indústria farmacêutica

*Por Ricardo Abramovay

A humanidade precisa da Amazônia não só em virtude dos serviços ecossistêmicos prestados pela floresta na regulação climática, na oferta de água e de produtos úteis para a alimentação humana e animal, mas também por sua importância na descoberta de medicamentos fundamentais.

Entre a localização de uma molécula e sua transformação em base para um remédio, o caminho é extremamente longo e custoso. De cinco mil compostos identificados pela pesquisa como virtualmente úteis para a indústria farmacêutica, apenas um acaba contribuindo para a produção de uma droga, após dez anos de pesquisa e a um custo superior a US$ 800 milhões, como mostra artigo de pesquisadores do Max Planck Institute.

Estes custos explicam que, nos anos 1980, os grandes laboratórios globais se voltaram ao esforço de usar química combinatória e triagem de alto rendimento (técnica que permite usar bioinformática na testagem e recombinação de grande número de compostos químicos) para reduzir sua dependência de produtos naturais. Mas esta ideia de que as informações já disponíveis e seu processamento por instrumentos digitais sofisticados poderiam acelerar o ritmo de descoberta e produção de novos medicamentos não se revelou verdadeira.

As bibliotecas de informação dos grandes laboratórios não eram capazes de oferecer pistas mais promissoras e de melhor qualidade que as originárias do mundo natural. A tentativa de contar apenas com informações já coletadas e de fazer novas descobertas com base em técnicas avançadas de inteligência artificial explica o que Steven Ogbourne e Peter Parsons caracterizam como uma crise de produtividade da indústria farmacêutica.

A etnobotânica (o estudo dos conhecimentos acumulados por povos originários em medicamentos, venenos, alucinógenos, alimentos e fertilizantes) desempenha aí um papel importante — embora, claro, não exclusivo. Os conhecimentos dos povos da floresta fornecem, com frequência, pistas importantes na formulação de novos fármacos. O estudo do Max Planck Institute cita o exemplo do Jaborandi, encontrado na Floresta Nacional de Carajás e que populações indígenas usavam no tratamento de aftas, resfriados e gripes: o Jaborandi tornou-se componente fundamental de um remédio antiglaucoma aprovado pelo Food and Drug Administration (FDA) dos EUA. As propriedades anti-inflamatórias da cloroquina foram reveladas aos europeus por um jesuíta que viajava pela Amazônia peruana em meados do Século XVII. Os exemplos neste sentido podem se multiplicar.

Novas drogas derivadas de produtos naturais correspondem a 60% de todos os medicamentos aprovados pelo FDA entre 1981 e 2010. A pesquisa mostra ainda que os produtos naturais possuem propriedades bioquímicas que os tornam superiores ao que é obtido pelas bibliotecas de informações detidas pelas grandes farmacêuticas. Outro artigo, publicado na prestigiosa Nature Reviews Drug Discovery tem como título a “re-emergência dos produtos naturais para a descoberta de drogas na era da genômica”.

O valor e os benefícios da biodiversidade das florestas tropicais para a indústria farmacêutica supõem, antes de tudo, tecnologias de ponta voltadas a seu conhecimento e a sua potencial utilização. A sofisticação destas tecnologias e, sobretudo, a complexidade das informações às quais elas serão aplicadas só podem ser enfrentadas com sucesso por meio de alianças estratégicas envolvendo organizações públicas e privadas de pesquisa. O artigo dos pesquisadores do Max Planck Institute preconiza que as bibliotecas químicas das grandes farmacêuticas sejam compartilhadas por meio do que hoje se denomina acordo pré-competitivo.

A ideia é que nenhum laboratório, isoladamente, poderá fazer frente ao desafio que representa conhecer a biodiversidade da floresta tropical e seus usos. Das 15 mil plantas superiores que se estima possuírem propriedades medicinais, menos de 200 são usadas na indústria farmacêutica. Reduzir esta lacuna é uma tarefa científica que pode dar lugar a inovações tecnológicas decisivas para os laboratórios, as empresas e as sociedades que dela forem protagonistas.

Acordos pré-competitivos entre grandes empresas são frequentes nas sociedades contemporâneas. A carta de intenções divulgada pelos três maiores bancos privados do Brasil sobre a Amazônia é um bom exemplo. A biblioteca química da AstraZaneca tornou-se disponível a uma rede com mais de 130 centros de pesquisa. A Joint European Compound Libraries (algo como Biblioteca Europeia Conjunta de Compostos) também pretende compartilhar quinhentos mil compostos que pertencem a sete grandes companhias.

Da mesma forma que fizeram os países europeus, é fundamental que os nove países em cujos territórios situa-se a maior biodiversidade do planeta também organizem o aprofundamento da pesquisa científica, da troca de informações e da cooperação regional e internacional em torno desta contribuição que a biodiversidade pode oferecer ao mundo por meio do avanço da pesquisa científica. Para isso, é fundamental que sejam melhorados os dispositivos já consagrados internacionalmente na Convenção da Biodiversidade, de repartição dos benefícios obtidos pela pesquisa com as populações que vivem na floresta e com as instituições científicas envolvidas nas descobertas. Hoje, estes mecanismos não estimulam a pesquisa e o uso industrial de seus resultados e, portanto, pouco beneficiam os povos das florestas tropicais e o avanço do conhecimento científico.

A consequência é a completa ausência das florestas tropicais na literatura científica e tecnológica da bioeconomia contemporânea. Dos 225 documentos sobre bioeconomia florestal publicados por 567 organizações de 44 países entre 2003 e 2020, segundo artigo recente do Journal of Forest Science, os países mais expressivos na área eram Finlândia e Canadá. Entre as dez organizações que mais publicaram na área de bioeconomia florestal, não há nenhuma situada em um país com floresta tropical. De todos os trabalhos analisados no artigo, as palavras-chave “bioeconomia” e “florestas tropicais” jamais aparecem juntas.

Sem respeito pela ciência, pelo multilateralismo, pela cooperação internacional e pelos povos da floresta, a Amazônia continuará sendo um problema num mundo em que ela poderia ser inesgotável fonte de soluções.

Ricardo Abramovay é professor Sênior do Instituto e Energia da USP. Autor de “Amazônia: por uma economia do conhecimento da natureza” (Ed. Elefante/Outras Palavras)

Fonte: UOL