Não se engane: a variedade das prateleiras de supermercado é pura monotonia
*Por Ricardo Abramovay
Quando você vai ao supermercado, a quantidade de cores, formatos, marcas, desenhos, fotos e alternativas é desconcertante. À primeira vista, suas chances de escolha, para as refeições que tem pela frente, são cada vez maiores.
Mas, na verdade, a palavra mais marcante do padrão alimentar contemporâneo é monotonia. E isso representa uma tripla ameaça: à saúde, à segurança alimentar e aos serviços ecossistêmicos dos quais todos dependemos.
Como assim? Como evocar monotonia, diante da estonteante variação das prateleiras?
O Estado Mundial das Plantas e dos Fungos, relatório recém-publicado pelo britânico Kew Royal Botanic Gardens, instituição prestigiosa, dirigida pelo pesquisador brasileiro Alexandre Antonelli, ajuda a responder a esta pergunta.
O estudo mostra que as plantas comestíveis catalogadas globalmente pela ciência chegam ao impressionante número de 7.039. Destas, 417 são consideradas cultiváveis. As descobertas de novas plantas não cessam. Só em 2019, os botânicos registraram 1.942 novas plantas e 1.866 fungos que ainda não conheciam. No Brasil, duas novas espécies de mandioca selvagem foram catalogadas.
As plantas catalogadas em 2019 concentram-se na Ásia (36%) e na América Latina (34%), confirmando a liderança em biodiversidade dos territórios situados no Hemisfério Sul. Mas, diante desta diversidade, por que então falar em monotonia?
É que esta espetacular variedade quase nunca chega ao seu prato. Cerca de 90% do que a humanidade ingere vem de apenas 15 produtos plantados, dos quais dependem a alimentação humana e a alimentação animal contemporâneas. Quatro bilhões de pessoas têm sua alimentação baseada quase exclusivamente em arroz, milho e trigo.
Processos de transformação industrial ampliam a variedade da oferta de produtos, mas não a biodiversidade daquilo de que são feito. Ao contrário, esta é sistematicamente reduzida em benefício de componentes industriais que permitem fabricar o gosto, o aroma, a consistência e a aparência do que é vendido, sobre a base da escassa variedade do que vem das plantas.
O problema não é o alimento industrializado — como o macarrão, o queijo ou o azeite, por exemplo. O xis da questão é a ampliação do ultraprocessamento alimentar, que se apoia em matérias-primas básicas e pouco variadas e, ao mesmo tempo, numa engenharia de alimentos cada vez mais poderosa, como vêm mostrando diversos trabalhos do Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP.
É aí que se encontra o vínculo fundamental entre a organização da agropecuária, a saúde humana e o estado atual da biodiversidade. A monotonia e a escassez em gêneros naturais dos produtos ultraprocessados (aliadas a técnicas que neles introduzem componentes artificiais e, frequentemente, viciantes) são um dos mais importantes vetores da pandemia global de obesidade. Ao mesmo tempo, a homogeneidade e a baixa diversificação dos ambientes agropecuários são determinantes fundamentais da erosão global da diversidade genética, como mostra a Avaliação Global da Biodiversidade e dos Serviços Ecossistêmicos.
Um dos elementos mais preocupantes da erosão genética contemporânea está nas gigantescas concentrações animais, sobre a base das quais o mundo tem, hoje, proteínas mais baratas do que nunca. Estas concentrações representam riscos crescentes à saúde pública e ao meio ambiente.
Tim Spector, epidemiologista genético britânico, acaba de publicar um livro em que recomenda não tal ou qual regime alimentar, não quantas vezes por dia cada um deve comer, ou quanto exercício fazer, mas, antes de tudo, uma dieta com ao menos trinta plantas diferentes por semana. Para Spector, os alimentos ultra processados deveriam ser taxados e o produto desta imposição deveria subsidiar e baratear a diversificação do consumo comida de verdade — sobretudo, frutas e vegetais. Para ele, estimular a arte da cozinha doméstica é parte importante da necessária transição. Aprendemos a ler e escrever, mas precisamos também aprender mais sobre comida e cozinha.
A integração entre saúde, produção agropecuária e fortalecimento dos serviços ecossistêmicos indispensáveis à vida social será um dos maiores desafios da Conferência Global sobre Biodiversidade, que deveria ter acontecido na China e foi transferida para o ano que vem, em função da pandemia. O que está em jogo são, em primeiro lugar, as florestas tropicais e a urgente necessidade de interromper sua devastação. Mas, na pauta da conferência, estará também não só a maneira como se usa a floresta, mas o vínculo entre agropecuária, saúde e erosão da biodiversidade.
A Organização Mundial da Saúde, a Organização Mundial da Saúde Animal e a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação estão trabalhando juntas em torno da noção de One Health (algo como “a saúde é uma só”). Mas, como mostra um trabalho recente de pesquisadores da Fondation Nationale des Sciences Politiques, multiplicam-se as iniciativas que procuram compreender e padrões de consumo alimentar, produção agropecuária, saúde humana e meio ambiente.
Para o Brasil, esta unidade é um trunfo e um imenso desafio. O trunfo está no fato de sermos o país mais megadiverso do planeta, apesar do abalo em nossa reputação global — derivado do avanço da destruição na Amazônia, no Pantanal, no Cerrado e do descaso das atuais políticas governamentais em preservar estes patrimônios universais pelos quais os brasileiros deveriam ser responsáveis.
O desafio é que de nada adianta alardearmos a condição de maiores exportadores mundiais de alimentos, se um dos mais importantes resultados deste desempenho for a erosão da diversidade genética da agropecuária e produtos cuja transformação — e cujo uso — fazem parte de um problema que a humanidade quer combater: a pandemia de obesidade.
A eficiência no mundo contemporâneo exige uma abordagem que vá além da capacidade de produzir a baixo custo. O maior desafio está em articular organicamente produção agropecuária, o fortalecimento da biodiversidade e melhoria na saúde humana. Nisso, o Brasil teria tudo para assumir a liderança global.
Ricardo Abramovay é professor Sênior do Instituto e Energia da USP.
Fonte: Uol