A ciência não nos salvará de nós mesmos
*Por Thiago França
A ideia de que a ciência é suficiente para resolver os problemas do mundo é errada e nos leva a não mudarmos nossas atitudes incoerentes e insustentáveis.
Toda vez que um(a) cientista submete um pedido de financiamento, ele ou ela precisa justificar a relevância da sua pesquisa para a sociedade. Qual o impacto que seus resultados terão na vida das pessoas? Num país como o Brasil, onde a maior parte do financiamento para pesquisas vem do dinheiro público, as agências de fomento têm todo o direito de perguntar qual a contrapartida desse investimento para a população, que é quem paga a conta. Alguns pesquisadores e pesquisadoras têm dificuldade em responder a essa pergunta de forma precisa, pois trabalham com pesquisa básica cujas implicações e aplicações podem ser difíceis de prever. Muitos outros, porém, não têm nenhuma dificuldade em expor a relevância do seu trabalho para a sociedade.
Tanto no Brasil como pelo mundo afora, incontáveis e incansáveis cientistas se esforçam dia após dia em busca de soluções para os inúmeros problemas que assolam o mundo. A lista é longa, e inclui temas que você com certeza já ouviu falar. Como combater a fome? Como lidar com a emergência climática, com a poluição do ar que respiramos, com o excesso de lixo que produzimos, com a destruição dos hábitats que perpetramos? Esses são problemas sérios e suas implicações afetam todos nós.
A criação de novas tecnologias para lidar com cada um desses problemas é uma das prioridades para agências de fomento em vários países no mundo, e a maioria das pessoas entende a necessidade de investir no desenvolvimento dessas tecnologias. O conhecimento necessário para resolver esses problemas urgentes deve ser alcançado o mais rápido possível. Precisamos investir na ciência para que ela nos salve. Certo?
Hábitos insustentáveis
Antes de prosseguir, quero deixar claro aqui que sou um árduo defensor do investimento em ciência, tanto na ciência aplicada para o desenvolvimento de novas tecnologias quanto na ciência básica que visa expandir as fronteiras do nosso conhecimento sobre a realidade. De fato, essas duas vertentes, básica e aplicada, sequer são dissociáveis. Não há ciência aplicada que não dependa das ideias oriundas da pesquisa básica. Além disso, acredito que também seja necessário investir mais na disseminação do conhecimento científico e na educação em ciência – não apenas para ensinar fatos e teorias mas, principalmente, para ensinar a pensar cientificamente. Dito isso, creio que está mais do que na hora de pararmos para refletir sobre o que realmente precisamos para resolver os problemas que afligem a sociedade.
Veja o caso da fome, por exemplo. Talvez a um século atrás esse fosse um problema que necessitaria de novas tecnologias para aumentar a produção de alimentos, ou aprimorar alimentos já existentes para aumentar seu valor nutricional. Hoje em dia, porém, é preciso se perguntar se realmente precisamos de novas tecnologias para que todos tenham o que comer. É claro que a capacidade de produzir mais e melhores alimentos, e produzir de formas que minimizem o impacto ambiental, será sempre bem-vinda, mas a falta de tecnologias mais avançadas já não é o problema no que diz respeito à fome.
Basta ver a quantidade colossal de alimentos descartados diariamente em todas as grandes cidades no mundo – cidades em que muita gente ainda passa fome – para ver que o problema que enfrentamos hoje não é o da falta de alimento, mas sim da forma como o alimento que produzimos é utilizado. Não precisamos de novas tecnologias para resolver o problema da fome (e certamente não precisamos colocar mais florestas abaixo). O que falta é um melhor gerenciamento de recursos e uma boa dose de consciência coletiva.
A situação é similar com o problema das mudanças climáticas, intimamente ligado à poluição do ar, ao uso em massa de combustíveis fósseis, à produção massiva de lixo, e à destruição das florestas e outros hábitats. Podemos sentar e esperar até novas tecnologias surgirem capazes de captar carbono da atmosfera e reciclar o lixo de forma mais eficiente – tecnologias que seriam muito bem-vindas, mas que não têm data certa para chegar. Ou podemos agir. Será que não podemos mudar nossos hábitos para gerar menos lixo e reduzir emissões de carbono? Ou nossa única opção é sentar e esperar a ciência nos salvar de nós mesmos – nos salvar de nossos hábitos insustentáveis?
Emergência climática
O fato é que muitas vezes acabamos usando a ciência como um escudo para não mudar nossos hábitos e abrir mão de nossos luxos. Não queremos comprar menos, comer menos carne, andar menos de carro e avião e criar políticas que distribuam os nossos recursos de forma mais justa. Queremos uma salvação fácil, uma salvação que não exija esforço, que não exija ação. Mas isso é um erro. A ciência é necessária e ela pode, sim, nos ajudar, pode salvar vidas. Mas para isso, precisamos usar corretamente as ferramentas que ela nos dá. E o fato é que ela já nos deu ferramentas mais que suficientes para pelo menos começar a lidar com os problemas que estamos enfrentando.
As discussões públicas sobre como agir em relação à emergência climática ilustram esse ponto de forma bastante clara. Temos fortes evidências de que a ação humana está impactando seriamente o clima do planeta. Jogamos grandes quantidades de gases de efeito estufa na atmosfera, gases que sabemos serem capazes de reter calor. Desequilibramos e destruímos ecossistemas que sabemos serem cruciais para a regulação do clima. Temos dados mostrando o aumento na temperatura do planeta ao longo do tempo. E temos modelos que mostram que, se não tomarmos ação, existe a possibilidade real de consequências catastróficas em um futuro assustadoramente próximo – estamos falando de poucas décadas aqui. Qualquer pessoa razoável, olhando as evidências que temos disponíveis, chegaria à conclusão lógica de que precisamos agir com urgência – de que o risco que corremos, o risco que impomos às próximas gerações, é inaceitável.
Ciência messiânica
Há, porém, quem argumente que nada disso tem importância, pois o clima, complexo como é, pode ser afetado por outros fatores além da ação humana, os quais podem ter efeitos imprevisíveis. Portanto, assim como você pode se alimentar bem e praticar exercícios para ficar saudável, mas ainda assim ser atingindo por um raio amanhã, podemos agir para reduzir os impactos da atividade humana e ainda assim termos que enfrentar superaquecimento, ou até super-resfriamento, devido a, por exemplo, uma mudança súbita e imprevisível na atividade do Sol.
Por mais que dificilmente alguém aceite a possibilidade de uma morte súbita e imprevisível como justificativa para não cuidar da saúde, ainda assim há quem argumente que a possibilidade de efeitos imprevisíveis no clima é uma justificativa para não agir. Como se existência de outros riscos à habitabilidade do planeta justificasse agir deliberadamente de uma forma que pode ter consequências catastróficas. É uma racionalização com verniz de ciência, usada para justificar o conforto (temporário) da inação, se passando por pensamento crítico, científico. E é, antes de mais nada, a prova de que a ciência pode nos informar como e quando agir, mas o conhecimento e as ferramentas que ela nos dá não garantem que faremos a coisa certa. Por isso é que precisamos, urgentemente, deixar de lado a visão messiânica da ciência que muitas vezes é promovida para a sociedade. A ciência por si só não salvará ninguém.
Precisamos começar a pensar cientificamente e usar o que a ciência nos dá, e o que ela já nos deu, para salvarmos uns aos outros. Se tem uma coisa que podemos aprender pensando cientificamente sobre os problemas com os quais lidamos é esta: precisamos agir. E agir logo. Só que para agirmos de forma a realmente fazer diferença, precisamos agir juntos, e isso exige mais do que ciência. Precisamos de humanidade. Precisamos olhar além do umbigo e pensar no outro, tanto no outro que está ao lado quanto no outro que está longe no espaço ou mais adiante no tempo; precisamos nos esforçar em nossas ações individuais para criar uma sociedade melhor para todos, mesmo que isso custe alguns de nossos luxos. E precisamos pensar melhor no que fazemos, no que consumimos, em quem votamos, e nas pautas e ideias que apoiamos – não só as que apoiamos explicitamente, pelo nosso discurso público, mas também implicitamente, pelas nossas ações privadas.
Thiago França é biólogo e doutor em fisiologia
Fonte: Direto da Ciência