Opinião

Conseguirão os parques e reservas brasileiros sobreviver ao governo Bolsonaro?

*Enrico Bernard

Em 2014, juntamente com dois colegas, publiquei um artigo científico na revista Conservation Biology onde analisamos os casos de alterações nos limites e categorias de unidades de conservação no Brasil. Estas alterações são conhecidas tecnicamente como protected areas downgrade, downsize e degazettement, ou simplesmente PADDD. No artigo – que teve uma matéria também publicada em OECO – identificamos 93 eventos de PADDD entre 1981 e 2012. Nossa análise trazia um dado alarmante: 7,3 milhões de hectares de unidades de conservação haviam sido afetados pelos eventos de PADDD, e o Brasil havia perdido nada menos que cerca de 5,2 milhões de hectares de parques e reservas, área equivalente ao estado do Rio Grande do Norte. Apontamos também que as unidades de conservação do Brasil experimentavam fortes pressões de importantes setores econômicos brasileiros, em especial do agronegócio e de seus representantes políticos.

Já naquela época, diversos projetos de lei com alterações de limites, de categorias, ou do rito de criação (ou extinção) de áreas protegidas estavam sob análise no Congresso Nacional, e se estas iniciativas fossem convertidas em leis, somente na Amazônia outros 2,1 milhões de hectares de áreas protegidas deixariam de existir como tal. Concluímos nossa análise alertando que problemas crônicos de falta de financiamento, de pessoal e de gestão das unidades de conservação brasileiras (explorados e discutidos em outras análises) estavam minando a capacidade de manutenção da integridade do sistema de unidades de conservação brasileiro, um dos maiores e mais importantes do mundo.

Seis anos após a publicação daquele artigo estamos diante de um cenário ainda mais sombrio para as unidades de conservação brasileiras. A ameaça agora é em escala institucional. O orçamento do Ministério do Meio Ambiente (MMA), de onde saem os recursos para a manutenção dos nossos parques e reservas federais sob responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), já vinha caindo sistematicamente desde o primeiro governo de Dilma Rousseff. Ainda assim – e apesar do estrago da aprovação de um Código Florestal pró-ruralista – naquele governo a estrutura de governança do MMA e, especialmente, do ICMBio, eram mantidas e estes órgãos ainda conseguiam ter um protagonismo em questões ambientais e unidades de conservação. No governo de Michel Temer os cortes orçamentários se mantiveram, e a bancada ruralista aumentou sua pressão sobre nossos parques e reservas, clamando pela alteração de limites e extinção das unidades que por azar estivessem no incessante e insaciável caminho pela expansão do agro. Mas, ainda assim, ideias mais radicais como a extinção do MMA e do ICMBio não eram defendidas. Pelo menos não publicamente. E pelo menos não por chefes de governo…

A eleição de Jair Bolsonaro representou um ponto de virada para as áreas protegidas brasileiras. E foi uma virada para pior. Muito pior. O desprezo de Bolsonaro e de seu ministro Salles pelo meio ambiente como um todo, e o tamanho do saco de maldades dos dois já foram amplamente mostrados aqui em muitas oportunidades. Agora, na sua mais recente jogada, Salles anunciou uma reestruturação no MMA. A mexida foi grande, com a criação de novas secretarias e departamentos, fusão de outras que já existiam, extinção de cargos de chefia, e criação de novos cargos comissionados de alto escalão que responderão diretamente ao ministro. No melhor estilo deste governo, as mudanças foram feitas a portas fechadas, e apresentadas sem justificativas mínimas que permitam à sociedade acompanhar uma linha de raciocínio – se é que ela existe e pode ser dita publicamente. Mas em meio à reestruturação anunciada chama a atenção a criação de uma Secretaria de Áreas Protegidas. Ora, é o ICMBio, desde sua criação em 2007, o órgão responsável pela gestão das 334 unidades de conservação federais do Brasil. Salles não explicou qual será, na sua visão, o papel do ICMBio após a reestruturação feita. Disse, segundo a Folha de São Paulo, que a nova secretaria vai apenas “apoiar e complementar” o trabalho do ICMBio. Vindo de quem vem, estaria Salles colocando em prática a morte por inanição do ICMBio? Se assim for, passados cerca de um ano e meio, Bolsonaro enfim executará seus planos originais de acabar com parte da pasta ambiental, conforme manifestara logo após eleito – algo que só não o fez pela péssima repercussão que a declaração teve na época.

No mesmo pacote recente de “mudanças”, Salles anunciou um projeto que prevê a adoção de parques na Amazônia pela iniciativa privada, focado principalmente na participação de estrangeiros. Por 10 euros por hectare ao ano, o patrocinador usaria a iniciativa como marketing, mas sem poder explorar a área. Resta uma pergunta ingênua: se você fosse dono de uma empresa, colocaria seu dinheiro e sua imagem associadas ao desempenho ambiental do governo Bolsonaro? O mais patético é que Salles já sabe a resposta, pois ela já foi dada publicamente por um grande e significativo grupo de empresas e bancos nacionais e estrangeiros: há uma visão unânime entre grandes players que a política ambiental deste governo está sendo desastrosa em vários aspectos, incluindo a implosão da imagem da marca Brasil no mundo. Em suma, o “Adote um Parque” é raso e condenado ao fracasso.

Em qualquer país decente, Salles já teria sido demitido. Ou melhor, em qualquer país decente, Salles nem chegaria a ser ministro do meio ambiente. Episódios como o “passar a boiada” de Salles escancararam a essência do pensamento de quem hoje está nas posições de tomada de decisão na área ambiental no Brasil.

As mudanças estruturais que Bolsonaro, Salles & Cia. vêm executando no MMA, no ICMBio e IBAMA são tão grandes e tendenciosas, que acabarão por implodir todo sistema de unidades de conservação do Brasil. Os parques e reservas brasileiros não sobreviverão íntegros à uma combinação de indicação de pessoas desqualificadas para as posições de chefia destas áreas, de corte e não-reposição de pessoal e de orçamento, de esvaziamento de responsabilidades e de omissão institucional. Estudos com áreas protegidas ao redor do mundo mostram que esta combinação é mortal para a integridade destas áreas. Então, basicamente o que antes eram eventos isolados de PADDD, e que afetavam especificamente algumas unidades de conservação, se transformou no Brasil de hoje em um risco para todo um sistema composto por centenas de áreas protegidas que cobrem milhões de hectares e prestam gigantescos benefícios para a população brasileira e mundial. Em bom português, o que antes era um problema de varejo, passou agora a ser uma ameaça por atacado. O alvo não é uma unidade específica, mas sim toda e qualquer unidade de conservação.

*Enrico Bernard é biólogo e doutor em Biologia. Professor da Universidade Federal de Pernambuco, onde coordena o Laboratório de Ciência Aplicada à Conservação da Biodiversidade.

Fonte: O Eco