Opinião

A produção de carne entrou na guerra cultural contemporânea

*Ricardo Abramovay

A carne entrou na guerra cultural. Desta vez, não se trata de alusão a sexo ou erotismo, mas da carne que compõe parte tão importante de nossa alimentação. E isso está relacionado aos impactos socioambientais do que comemos e de como o produzimos.

A proposta de Green New Deal, apresentada em fevereiro de 2019 pela congressista norte-americana Alexandria Ocasio-Cortez e pelo senador Ed Markey (ambos do Partido Democrata) e que busca neutralizar as emissões de gases de efeito estufa na economia dos EUA até 2030, é silenciosa quanto aos impactos da cadeia global da pecuária sobre o clima — apesar de a agricultura ser responsável, nos Estados Unidos, por 10,5% das emissões, dois terços das quais vindos da produção de carne e leite.

Mas bastou Ocasio-Cortez, num programa de televisão de março de 2019, dizer que “talvez não seja bom comermos hambúrguer no café da manhã, no almoço e no jantar” e abordar criticamente aquilo que os norte-americanos chamam de “factory farming” (fazendas-fábricas), criações que concentram milhares de animais confinados em espaços pequenos e com pouco sol, para que o Green New Deal fosse vinculado, pela direita norte-americana, a autoritarismo de esquerda.

O deputado Republicano Rob Bishop (Utah) convocou uma coletiva onde mordia um hambúrguer e dizia que o gesto se tornaria ilegal, caso o Green New Deal fosse aprovado. Donald Trump foi além, declarando que, com a proposta, não haveria mais vacas nos EUA e um de seus assessores comparou as críticas ao extravagante consumo norte-americano de carne a “stalinismo”. Um dos mais importantes propagadores de teorias conspiratórias dos EUA, Ric Wiles, descreveu as inovações tecnológicas das carnes baseadas em plantas como obra de luciferianos, dos que querem “criar uma raça de criaturas sem alma”, segundo reportagem do site norte-americano de notícias Vox.

A guerra cultural em torno da alimentação e especialmente do consumo de carne ganhou, nos últimos cinco anos, um componente que explica a virulência das posições da direita norte-americana e que muda os termos do debate sobre o assunto. Trata-se das diferentes modalidades de carnes cuja produção não depende da criação de animais. Os termos em inglês são expressivos: animal-free meat (carne produzida sem o recurso a abate de animais), cruelty-free (sem crueldade) e slaughter-free (sem abatedouros) são expressões cada vez mais usadas.

Dois fatores explicam uma impressionante explosão de iniciativas e de investimentos que vinculam pesquisa de ponta ao oferecimento de novas modalidades de consumo de carne.

O primeiro é de natureza socioambiental. Os impactos negativos do consumo de carne sobre o mais importante desafio coletivo que a humanidade enfrenta, as mudanças climáticas, podem ser considerados consenso na comunidade científica e nas organizações internacionais de desenvolvimento.

A maior fonte dessas emissões (70%) vem dos animais ruminantes. Se o rebanho bovino do mundo fosse um país, ele emitiria mais que qualquer outro, à exceção da China. Por isso, a McKinsey preconiza que a participação das proteínas derivadas dos ruminantes no consumo global passe dos atuais 9% a 4% até 2050. É uma das condições para que a meta de elevação da temperatura global média em até 1,5º, contida no Acordo Climático de Paris, seja respeitada.

Além dos impactos sobre as mudanças climáticas, a produção concentrada de animais converteu-se, como mostra o recém-lançado livro de Michael Greger, na mais importante ameaça de que doenças virais ou bacterianas atinjam de forma ampla as sociedades humanas.

Mas essas razões, até aqui, não foram suficientes para mudar os hábitos alimentares. O consumo de carnes no mundo não para de subir. É da ciência e da tecnologia que virá a mais importante contribuição para que a humanidade possa consumir carne e, ao mesmo tempo, reduzir drasticamente seus impactos socioambientais.

Se, nos últimos cinquenta anos, as inovações que permitiram o crescimento da oferta agropecuária são de origem basicamente genética, agora o progresso tecnológico na área alimentar deriva fundamentalmente das tecnologias da informação. Já existem técnicas que permitem, a custo cada vez menor, produzir carne a partir de células de animais, graças à biologia computacional.

O alimento vai-se tornando uma espécie de software, criado de forma descentralizada e adaptado às necessidades do consumidor. A biologia sintética cria novos sistemas biológicos com base em ínfimas partes constitutivas, incluindo DNA, proteínas e outras moléculas orgânicas, aplicando princípios de engenharia à biologia. Como diz o recente relatório de um grupo voltado a este tema (RethinkX), se a primeira domesticação das plantas e dos animais permitiu o domínio sobre macro-organismos, agora, na era da informação, abriu-se a possibilidade de controle e manipulação dos micro-organismos.

Já se contam aos milhares as startups que se voltam ao setor. São as chamadas empresas de food-tech (comida+tecnologia). Os próprios gigantes agroalimentares globais investem nessas novas modalidades de carne, bem como os gigantes digitais do Vale do Silício.

Seja qual for o rumo dessa importante onda nos padrões alimentares contemporâneos, ela deve trazer consequências fundamentais para o Brasil. Não há dúvida de que se formou no país a mais poderosa agricultura tropical do planeta, da qual depende parte fundamental de nossas exportações e de nossa riqueza. Mas são fortes os sinais de que o mundo será cada vez menos tolerante com os impactos negativos da agricultura e da pecuária sobre a oferta de serviços ecossistêmicos (a começar pelo clima) essenciais para a vida na Terra.

Nosso maior risco é que o repúdio à destruição seja conjugado a conquistas científicas e tecnológicas que vão tornando a agricultura e a pecuária, tal como as conhecemos até aqui, menos relevantes para as sociedades contemporâneas.

Superar nossa dependência crescente de produtos primários, cada vez mais passíveis de substituição, é também parte de uma disputa que não é apenas comercial, mas também cultural, e cujo enfrentamento exige muita ciência e muita tecnologia.

*Ricardo Abramovay é é professor Sênior do Programa de Ciência Ambiental do IEE/USP.

Fontel: Uol