Tempo de boiadas
Por Fábio Feldman e José Pedro de Oliveira Costa
Após o advento da covid-19, muita coisa tem passado batido. Com razão, a pandemia monopoliza a atenção pela gravidade dos impactos devastadores em todos os aspectos da vida coletiva e individual. Além disso, particularmente no Brasil, abre-se outra frente de polêmica, estresse social e perturbação na área da saúde: a postura diversionista do presidente da República, que confunde a população, emite sinais trocados e leva milhares de pessoas a confrontarem as orientações científicas, como se fosse uma questão política. Após a divulgação do vídeo da reunião ministerial de 22 de março, sabemos também que o próprio ato de governar, em geral, está contaminado por comportamentos e orientações que transformam as políticas públicas em searas de interesses pessoais ou de grupos ligados a Jair Bolsonaro e alguns de seus ministros.
Enquanto isso, fatos graves acontecem, não têm o devido registro e sua importância é dissolvida pela conjuntura. A área ambiental tem sido pródiga nesses fatos, sobretudo na Amazônia, onde áreas naturais protegidas e terras indígenas têm sido alvo de ataques em massa, conectando o Palácio do Planalto, forças retrógradas no Congresso e a criminalidade in loco na floresta. E agora estamos informados de que há uma lógica nisso, desvendada pelo ministro Ricardo Salles, na referida reunião, para escândalo do país e do mundo. É a boiada de Salles passando por cima da proteção ambiental.
Mas nem só na Amazônia tais fatos acontecem. Um deles, gravíssimo, ocorreu em São Paulo recentemente, a uma pequena distância da capital, no Vale do Ribeira: o confronto armado entre garimpeiros e policiais militares da Polícia Ambiental e colaboradores da Fundação Florestal.
O palco do trágico episódio foi o Parque Estadual Intervales, porção preservada da Mata Atlântica no litoral sul paulista. Do enfrentamento resultou a morte do vigilante Damião Cristino de Carvalho e o ferimento à bala de outro servidor, Luís Soares de Lima. Mas o que chamou mais a atenção foi a postura ousada dos criminosos, traduzida pela “caça” aberta aos agentes públicos com a clara intenção de eliminá-los, como descreveu Allan de Abreu na Revista Piauí de 6 de maio.
Poucas vezes se viu na área ambiental a disposição atrevida de abater a autoridade pública no cumprimento de suas atribuições. Com isso, surge a inevitável pergunta: por que isso ocorreu? A resposta não pode ser procurada no caso em si. Vivemos um momento em que o próprio presidente da República tem estimulado publicamente atividades ilegais, como invasão de terras indígenas por garimpeiros, defendendo os infratores e tomando iniciativas que coíbem a atuação dos órgãos ambientais.
O resultado prático das declarações presidenciais e da atitude anti-ambiental do ministro do Meio Ambiente se dá claramente na ponta da trincheira, com os criminosos assumindo pretensa legitimidade que até então não ousavam. E aqui não há que falar em gente miúda. O uso de equipamentos dispendiosos indica a presença do crime organizado e de grandes posses.
Vemos, dia a dia, desmoronar a proteção ambiental fruto de uma luta de décadas, da sociedade em geral, dos ambientalistas e de setores do Congresso Nacional. Isso resultou num arcabouço legal e institucional sólido, que não apenas tipifica os crimes ambientais, mas também protege de forma ampla os biomas, além de ordenar e disciplinar o Sistema Nacional de Unidades de Conservação.
Tais leis foram, na maioria, aprovadas pelo Congresso enquanto lá estava, mandato após mandato, o deputado Bolsonaro. Soma-se a Constituição Federal, na qual consta nítida e irrefutável a obrigação do poder público de defender o meio ambiente. Aliás, Constituição que o presidente jurou cumprir e defender, quando de sua posse.
O estímulo declarado de Bolsonaro ao descumprimento da Constituição e da legislação, em última instância, está incentivando a criação de milícias do garimpo e das invasões das áreas protegidas em todo o Brasil, na mesma lógica e modus operandi das demais milícias, a exemplo do que ocorre no Rio de Janeiro.
Quem elegeu Bolsonaro não tinha, necessariamente, postura contra a proteção ambiental. É sabido que muitos votaram plebiscitariamente contra o PT. Mas, agora, é o momento para todos os brasileiros, em especial os que elegeram Bolsonaro, refletirem sobre o preço a pagar pela política da polarização, pelo abandono dos programas de governo em nome de uma guerra ideológica. O que está acontecendo nas áreas ambiental e indígena é tragédia à parte, pela qual o Brasil, todos os brasileiros e o planeta serão pesadamente penalizados.
Fonte: Correio Brasasiliense