Opinião

O garimpo e o desmatamento não entram em quarentena na Amazônia

*Marcia Oliveira

A notícia da morte de um jovem de 15 anos, da etnia Xiriana do Povo Yanomami, primeira vítima de corona vírus registrada entre povos indígenas trouxe à tona a fragilidade do sistema de atenção à saúde dos povos indígenas na Amazônia. O jovem que estava internado na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Geral de Roraima, veio a óbito na na noite do dia 9 de abril por complicações respiratórias. Entidades ligadas aos povos indígenas como o Cimi (Conselho Indigenista Missionário), têm denunciado a subnotificação de casos da Covid-19 em toda a Amazônia.

Diante do fato, a Associação Hutukara do Povo Yanomami, com sede em Boa Vista, capital de Roraima, veio a público denunciar que esta morte não é um caso isolado e que o vírus não chegou sozinho na aldeia Helebe da etnia Xiriana localizada no rio Uraricoera que é uma rota de entrada de garimpeiros na Terra Indígena Yanomami. As rotas garimpeiras vêm sendo denunciadas insistentemente pelas lideranças indígenas.

O presidente da Associação Hutukara, Dário Kopenawa denuncia que existem mais de 20 mil garimpeiros explorando ouro de forma clandestina na Terra Indígena Yanomami. Este tema também tem sido denunciado em nível internacional. Em 03 de março deste ano, o líder Yanomami Davi Kopenawa participou de uma audiência na Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), em Genebra, para denunciar a “invasão do território Yanomami pelos garimpeiros e a ameaça que isto representa aos grupos isolados Moxihatetea”.

Ao mesmo tempo, lideranças indígenas alertam que os grupos de índios isolados são os mais frágeis nas rotas garimpeiras. Tanto podem ser cooptados, coagidos ou recrutados para o trabalho na garimpagem em condições análogas ao trabalho escravo, como também podem ser eliminados da rota garimpeira como ocorreu no “Massacre de Haximu”, no qual os garimpeiros massacraram uma comunidade inteira, inclusive as crianças yanomami, em 1993.

A partir de 2016, a clandestina economia garimpeira voltou com muita força ao cenário político e econômico da Amazônia, mesmo sendo totalmente proibida a extração em territórios indígenas, de acordo com a Agência Nacional de Mineração (ANM).

Em Roraima, o senador Chico Rodrigues (DEM) tem atuado na disseminação do discurso e incentivo à garimpagem clandestina em Terras Indígenas. Mesmo tendo sido condenado pelo Tribunal de contas da União (TCU) em 2018 que o incluiu na “ficha suja e inelegível”, o então senador é um dos defensores do projeto ‘garimpo artesanal feito pelos índios’.

O senador Chico Rodrigues conta com amplo apoio da Sociedade de Defesa dos Índios Unidos de Roraima (Sodiurr), que vem insistindo que o projeto para regulamentação da mineração em áreas indígenas avance no Congresso. Enquanto isso não acontece, comunidades indígenas vinculadas à Sodiurr, como a Napoleão, localizada no município de Normandia, ao Norte do estado de Roraima, avançam com o ‘garimpo artesanal feito pelos índios’, coordenado nas bases por representantes de igrejas evangélicas ligadas, principalmente à Assembleia de Deus, que vêm nessa atividade garimpeira uma forma de ‘empreendedorismo’ indígena.

O questionamento de instituições sérias que acompanham a questão indígena na Amazônia, como o Instituto Socioambiental (ISA), a Comissão Arns, a rede Conectas, além do CIMI e do Conselho Indígena de Roraima (CIR) que têm apresentado recorrentes denúncias à garimpagem clandestina em terras indígenas refere-se à entrada e circulação de garimpeiros vinculados à grandes mineradoras nacionais e internacionais que vem transformando o ‘garimpo artesanal’ em grandes mineradoras à céu aberto em toda Amazônia. Uma das formas de se comprovar essa mineração ilegal é a circulação de máquinas pesadas ‘alugadas’ pelos ‘garimpeiros artesanais’ que vão destruindo áreas inteiras com grande nível de contaminação ambiental irresponsável, como o que ocorre na comunidade indígena do Napoleão.

Aliado fiel da garimpagem é o desmatamento na Amazônia que vem crescendo assustadoramente nos últimos anos para fazer crescer o monocultivo de soja e a criação de gado para exportação. Somada à crise da pandemia a crise socioambiental, que há tempos enfrentamos na Amazônia, transformam-se numa grande crise estrutural que nos fazem refletir sobre a tragédia humanitária que será o mundo sem a Amazônia com sucessivas pandemias muito piores do que esta que vivemos atualmente.

Por fim, não restam dúvidas de que a circulação indiscriminada e irresponsável de garimpeiros, madeireiros e ‘missionários’ negacionistas colocam em risco de genocídio os povos indígenas da Amazônia ameaçados pelo corona vírus. Sem atenção suficiente dos governos locais, os índios estão reagindo com iniciativas próprias de proteção às suas comunidades impedindo a entrada e circulação de estranhos, mantendo o isolamento como comportamento fundamental e aprendizado ancestral na luta contra doenças ‘trazidas pelos brancos’ que os afetam desde a colonização.

Exemplo de resistência é a atitude dos povos do Vale do Javari, no noroeste do Estado do Amazonas. “Em meio à pandemia, indígenas tentam impedir que missionários fundamentalistas invadam e contaminem seus povos. Para isso, a União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Unijava) ingressou com uma ação civil pública na Justiça Federal de Tabatinga, no Amazonas, um dos estados mais atingidos pelo coronavírus, pedindo que missionários sejam impedidos de entrar na terra indígena e que a Funai expulse outros missionários que estão atuando no seu interior, mesmo com todas as restrições diante da grave crise”.

*Marcia Oliveira é doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia (UFAM), com pós-doutorado em Sociedade e Fronteiras (UFRR).

Fonte: Amazonas Atual