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Opinião
Novo coronavírus sob a ótica da demanda de energia e dos impactos sociais: o que podemos esperar e como nos preparar?
Luan Santos (1), Mariana Weiss (2), Thauan Santos (3), Lucas Caldas (4), Esperanza González (5) e Carolina Grottera (6)
O surto do novo coronavírus (COVID-19) tem causado instabilidades à economia mundial e mudanças significativas nos padrões de consumo e nos níveis de produção. Isso tem impacto direto sobre a demanda de energia e sobre a pegada de carbono, pelo menos no curto prazo, dos países. Naturalmente, estes efeitos não se dão de forma homogênea sobre a população, variando de acordo com a renda, gênero, vínculo empregatício e natureza do trabalho, além de outros aspectos ligados à urbanização e ao acesso a serviços básicos essenciais.
Ainda é cedo para predizer a intensidade e a duração destes impactos, mas uma coisa é certa: a pandemia do COVID-19 tem potencial de alterar estruturalmente nossas relações pessoais e profissionais. Este artigo busca discutir estes aspectos sob a ótica da demanda de energia e dos impactos sociais, trazendo recomendações de políticas de curto e médio prazos para a contenção da crise, além de debater algumas lições a serem aprendidas a partir deste momento único que vivemos.
O Observatório “Earth” da NASA vem destacando a redução acentuada das emissões de gases de efeito estufa (GEEs) e poluentes, principalmente na China e na Itália. No entanto, o que pode ser encarado de maneira positiva sob o ponto de vista ambiental esconde, na verdade, uma série de aspectos com significativo potencial negativo desde a perspectiva socioeconômica.
Por trás da notável redução de emissões, encontra-se um preocupante quadro de paralisação nas atividades produtivas que pode levar estas economias à desaceleração (ou mesmo recessão). Por exemplo, segundo relatório do Carbon Brief, a redução de 25% nas emissões da China em fevereiro, em comparação com o mesmo período de 2019, pode ser diretamente relacionada à queda de 15% a 40% na produção de seus principais setores industriais neste mesmo período. As medidas de isolamento social que vêm sendo adotadas com o objetivo de conter o novo coronavírus têm colaborado, na prática, para o arrefecimento do consumo das famílias.
Em outros países em desenvolvimento, sem o poder econômico e geopolítico da economia chinesa, os impactos socioeconômicos da crise ocasionada pelo COVID-19 podem ser ainda mais cruéis. Nesse contexto, o Brasil é um caso emblemático a ser analisado, por se tratar de um país continental com alta desigualdade na distribuição de renda, grandes disparidades socioeconômicas regionais, com elevado número de trabalhadores autônomos informais, além de apresentar carências estruturais nas áreas de saneamento básico, saúde e educação. Tal realidade se torna ainda mais grave ao se analisar as especificidades regionais em termos de condições socioeconômicas e (in)acesso à energia.
Análises
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio 2019 (PNAD), a renda média per capita do brasileiro em 2019 foi de R$ 1.493,00, oscilando entre R$ 635,59 no Maranhão e R$ 2.685,76 no Distrito Federal. Além de discrepâncias regionais, o Brasil apresenta também grande desigualdade na distribuição de renda. Segundo a PNAD, em 2018, considerando apenas o rendimento mensal do trabalho, em média uma pessoa pertencente ao 1% da população mais rica apresentava um salário 34 vezes maior (R$ 27.744,00 ao mês) do que o de uma pessoa pertencente à metade mais pobre da população.
Metade da população ocupada brasileira em 2018 recebia em média R$ 830,00 ao mês, valor inferior a um salário mínimo, evidenciando a existência de trabalho informal na economia. Em 2019, a PNAD Contínua relatou que, apesar de a economia brasileira em 2019 apresentar taxa de desemprego de 11,9%, apenas 59% da população trabalhavam com carteira assinada. O grande índice de informalidade colabora indiretamente por intensificar as desigualdades na economia brasileira, além de aumentar ainda mais a vulnerabilidade dessas famílias.
De acordo a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) de 2017-2018[12], 36,6% das despesas das famílias brasileiras são destinadas a gastos com habitação, que incluem desde as despesas com aluguel (R$ 700,49), energia elétrica (R$ 115,36), pacote de telefone, TV e internet (R$ 50,41) e água e esgoto (R$ 47,34). O peso das despesas com habitação sobre o orçamento familiar varia de acordo com o poder aquisitivo das famílias. Nas famílias de rendimento até 2 salários mínimos, as despesas com habitação representavam 39,2% do orçamento familiar, ao passo que naquelas com rendimento superior a 25 salários mínimos essa mesma categoria de despesa detinha apenas 22,6% do orçamento familiar.
Com o aumento do teletrabalho (home office) proporcionado pela pandemia do COVID-19 a uma parcela da população brasileira, tende-se a aumentar o consumo de energia elétrica do setor residencial apesar da queda acentuada no consumo referente aos setores industrial, comercial e transportes. Acredita-se que o aumento do consumo de energia elétrica no setor residencial seja relacionado ao maior uso ao longo do horário comercial de computadores, televisões e ar condicionado nas cidades localizadas nas regiões de clima mais quente e que não apresentam grande mudança de temperatura ao longo do ano.
A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) destaca que, entre 2005 e 2017, o consumo de energia elétrica do setor residencial teve um crescimento de 61% que foi fortemente influenciado pela elevação da aquisição e do uso de ar-condicionado. Ainda segundo a EPE, a participação dos aparelhos de ar condicionado no consumo de energia elétrica passou de 7% para 14% no período, tornando-se o quarto equipamento que mais consome eletricidade nas habitações. Logo, com a realização de teletrabalho durante a quarentena, é possível que o consumo de energia para fins de refrigeração no setor residencial cresça significativamente nas cidades localizadas nas regiões Norte e Nordeste e outras regiões costeiras, como o Rio de Janeiro.
No curto prazo, o aumento do consumo de energia elétrica decorrente da quarentena e do incentivo da modalidade de teletrabalho implicaria em maiores custos para as famílias. Este custo adicional pode gerar um aumento nos índices de inadimplência e queda dos níveis de bem-estar. Em vista disso, a ANEEL determinou a suspensão do corte de inadimplentes pelos próximos 90 dias em todo o país, podendo esse prazo ser estendido de acordo com duração do estado de calamidade pública.
No entanto, a política de negociação para pagamento da dívida referente ao consumo de energia ao longo da crise será definida por cada distribuidora de energia elétrica. Por exemplo, no estado do Rio de Janeiro, em que foi determinada pelo governo estadual a suspensão das cobranças de concessionárias de luz, água, telefonia e gás pelo prazo de noventa dias, o débito deverá ser pago de forma parcelada ao longo dos 6 meses posteriores ao fim da pandemia.
Outro impacto esperado, mesmo que de forma indireta, devido ao maior tempo das pessoas em suas residências, seria o aumento do consumo de combustíveis fósseis, entre eles o gás liquefeito de petróleo (GLP) e o gás natural para cocção dos alimentos. Em condições mais extremas e localidades mais remotas e carentes, é possível que algumas famílias migrem do consumo de GLP para o uso da lenha como forma de desonerar seu orçamento familiar. Esse cenário pode colaborar também para o aumento das emissões de GEE do setor residencial, assim como pode ocasionar impactos negativos relacionados à saúde dos moradores, devido à emissão de materiais particulados.
Ao se analisar a densidade urbana, é de se esperar que comunidades e locais com elevada densidade populacional sejam alvo de maior vulnerabilidade à transmissão do vírus, como também sofram mais após o possível surgimento dos sintomas e necessidade de tratamento. Nesses espaços, é comum a falta de ventilação adequada, as unidades habitacionais são menores, existe uma maior proximidade entre os moradores e há, muitas vezes, insalubridade.
Soma-se o grande número de trabalhadores informais e o grande percentual de pessoas utilizando transporte coletivo, características que tendem a agravar o contágio e dificultar o período de recuperação da população após a infecção. Uma pesquisa recentemente realizada mostrou que mais de 70% já têm seu orçamento impactado pela crise. É de se esperar também que o grupo de trabalhadores residentes nas comunidades estejam alocados majoritariamente nos setores industrial e comercial e, consequentemente, não terão a possibilidade de se adaptarem ao teletrabalho.
Olhando-se para o consumo de energia nos setores industrial, comercial e de transportes no país, espera-se uma redução do consumo energético e, portanto, das emissões de GEE no curto prazo. Fazendo-se uma retrospectiva ao longo das últimas décadas, verifica-se um aumento das emissões de GEE, marcado por quedas temporárias causadas por crises econômicas, incluindo a crise financeira global de 2008 e os choques de petróleo da década de 1970. As emissões e a poluição se recuperam quando as economias começam a se reaquecer, mais do que compensando quaisquer benefícios de curta duração para o clima.
Além disso, a queda no preço do petróleo atrelada à desaceleração econômica pode desencorajar o investimento em eficiência energética e em energias renováveis no Brasil e no mundo, além de incentivar o aumento do consumo de derivados de petróleo. Ou seja, com a pandemia do COVID-19, muitos governos e setores econômicos provavelmente apresentarão maior dificuldade em reduzir as suas emissões no longo prazo. Adicionalmente, tal queda no preço do petróleo será ainda mais prejudicial para países, como o Brasil, cuja realização de investimentos em educação e assistência médica, geração de empregos e renda dependem das receitas provenientes deste setor. Segundo estudo da FGV Energia, o setor de óleo e gás brasileiro (incluindo extração, refino, distribuição e comércio) foi responsável direta e indiretamente por 3,7% do valor adicionado do país e por 1,4 milhões de empregos em 2015.
Propostas de Políticas Públicas
A preocupação sobre como a atual ruptura financeira pode prejudicar os esforços de países, organizações internacionais e empresas a reduzir as emissões de GEE é real. Acreditamos que qualquer queda nas emissões ligada à pandemia terá vida curta, enquanto a queda contínua nos preços do petróleo poderá incentivar mais consumo de derivados de petróleo e prejudicar a demanda por produtos e serviços com baixo conteúdo de carbono, dificultando o cumprimento de compromissos previamente assumidos, como a Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) brasileira e o próprio Acordo de Paris.
Não há absolutamente nada para se comemorar sobre o declínio temporário nas emissões de GEE, decorrente das consequências causadas pelo coronavírus, já que tais emissões tendem a se recuperar logo após o término desta pandemia, como sugere a história. Precisamos, na verdade, de declínios nas emissões de GEE que sejam sustentados.
Para encarar a crise de saúde pública sem antecedentes históricos somada à recessão econômica que se aproxima, a recomendação imediata é o confinamento obrigatório, medida que tem surtido efeito em países que se encontram em estágios mais avançados de contágio e combate. Entretanto, é fato que uma grande parcela da população não é capaz de simplesmente migrar para um regime de teletrabalho, que atualmente pode ser considerado um verdadeiro privilégio. Demissões em diferentes setores são esperadas, sendo especialmente preocupante a situação dos trabalhadores informais e autônomos, que não são cobertos pelo sistema de seguridade social.
O enfrentamento exige políticas e esforços coletivos, rápidos e jamais vistos na história. Seus efeitos impactam negativamente a economia dos países, bem como variáveis de natureza social, ambiental e geopolítica. De qualquer forma, este momento pode sinalizar e evidenciar inúmeras alternativas de comportamento humano e de estratégias empresariais e de Estado, que podem afetar positivamente a agenda climática.
Dessa forma, algumas recomendações seriam:
- Garantia do mínimo vital para a sobrevivência da população. Momentos como este também são uma oportunidade para se começar a discutir com seriedade programas de renda básica universal, tópico ainda muito incipiente no Brasil[20]. O governo federal também poderia se comprometer com a manutenção da ampla cobertura do Bolsa-Família ou com o pagamento do seguro-desemprego, mesmo no caso de suspensão temporária. Essas medidas garantem ao trabalhador formal, informal ou autônomo seu sustento básico e atuam como um desincentivo para que as empresas efetivamente demitam seus funcionários, arcando com os altos custos de demissão convencionais;
- Fortalecimento da cadeia de suprimento de itens básicos como alimentação e higiene. Agências reguladoras devem estar especialmente atentas a possíveis abusos nos preços praticados. Em alguns casos, como a cidade do Rio de Janeiro, é fundamental viabilizar o acesso da população à água potável, especialmente porque se recomenda alto consumo diante da pandemia do COVID-19. Isso é especialmente importante na região, particularmente por conta da alta concentração de geosmina na água ofertada pela Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae). O mesmo ocorre em outras regiões do Brasil, onde a falta de água é uma realidade da população, como em algumas regiões do Nordeste, por exemplo na grande Recife, assim como na periferia de Porto Alegre e em algumas comunidades do Rio de Janeiro;
- Mapeamento e identificação de áreas prioritárias e vulneráveis para ação imediata. Acredita-se que essas regiões estão localizadas principalmente em comunidades carentes de infraestrutura básica (saneamento, energia, etc.) e com alta densidade populacional, presentes principalmente nos grandes centros urbanos. Essa tarefa pode ser realizada de forma colaborativa entre gestores públicos e sociedade civil, como é possível observar na Plataforma colaborativa “Urbanistas contra o Corona[21]”.
- Postergação da cobrança de serviços básicos como eletricidade, água, e gás natural. Destaca-se, entretanto, que devem ser estabelecidos ( ao menos sugeridos) limites de consumo baseados na média histórica, como adotado durante a crise do “apagão” de 2001. Isto é importante para incentivar um consumo consciente, evitar desperdícios e reduzir possíveis riscos de inadimplência no futuro;
- Relativamente à governança e à coordenação entre os entes da federação, destaca-se que a União deve ser capaz de articular políticas coesas com estados e municípios e alinhadas aos critérios estabelecidos por diferentes países, bem como pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Isso se justifica, seja pelo conflito latente entre propostas do Ministério da Saúde com as do Ministério da Economia, pelo choque de proposições feitas pelo presidente com aquelas sugeridas pelos governadores e prefeitos. Diante das incertezas que se apresentam, alinhamento e políticas robustas são fundamentais para mitigar os impactos adversos da pandemia no país;
- Pós-crise, é importante que se repense as formas de trabalho, os modelos de produção, os padrões de consumo, bem como a mobilidade urbana. Dessa forma, é fundamental que Estado e iniciativa privada fomentem a modalidade de teletrabalho, uma vez que ela contribui para a mitigação das emissões de GEE da economia.
Conclusão
A pandemia do COVID-19 tem sido responsável por grandes impactos socioeconômicos. No caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil, tais impactos tendem a ser ainda mais profundos devido à grande desigualdade na distribuição de renda, aos altos níveis de pobreza, disseminação de empregos informais e existência de uma série de carências estruturais, como falta acesso por significativa parcelada da população a saneamento básico, água potável, seguridade social e serviços de saúde de qualidade.
Apesar da momentânea queda das emissões de GEEs, a desaceleração econômica colaborou também para a queda vertiginosa do preço do petróleo. Isso incentivará o aumento do consumo de derivados de petróleo e consequente aumento das emissões em breve ao longo da recuperação econômica dos países após a crise.
Isso pode vir a dificultar a manutenção de investimentos em eficiência energética e fontes renováveis, bem como o cumprimento dos compromissos ambientais previamente assumidos, como por exemplo as NDCs. A queda de preço do petróleo pode resultar também em queda de receita no curto prazo para países em que o setor petrolífero desempenha papel importante na economia, como é caso do Brasil. Isso pode levar também a desdobramentos negativos para as famílias cuja renda dependem do desempenho desse setor.
Desta forma, acredita-se que a adoção das políticas públicas propostas neste artigo venha a tornar a economia brasileira mais resiliente e capaz de superar de forma mais eficaz os impactos socioeconômicos ocasionados pela pandemia do COVID-19, que deve ser encarada pelo país, na verdade, como um aprendizado para continuar a perseguir o seu desenvolvimento sustentável.
(1) Professor do Programa de Engenharia de Produção (PEP/COPPE/UFRJ) e de Engenharia UFRJ-Macaé.
(2) Pesquisadora da FGV Energia e Consultora do Banco Mundial.
(3) Professor de Economia da Escola de Guerra Naval (EGN) e pesquisador do Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales (CLACSO).
(4) Professor na Pós-Graduação Executiva em Meio Ambiente da COPPE/UFRJ e pesquisador do Núcleo de Ensino e Pesquisa em Materiais e Tecnologias de Baixo Impacto Ambiental na Construção Sustentável (NUMATS/COPPE/UFRJ).
(5) Consultora do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
(6) Pesquisadora do Centro de Estudos Integrados sobre Meio Ambiente e Mudanças Climáticas (CentroClima/COPPE/UFRJ) e do European Institute for Economics and the Environment (EIEE), na Itália.
Fonte: Agência epbr