Um futuro para os indígenas amazônicos
*Marc Dourojeanni
Os indígenas são, sob certo ponto de vista, os donos de quase um terço da Amazônia. No caso do Brasil, os indígenas têm algum controle de cerca de cem milhões de hectares da Região Norte. Além de justo, isso é peça fundamental na estratégia de conservação dos ecossistemas naturais ou pouco alterados da região, já que mais do que duplica a cobertura das áreas naturais protegidas. Por isso, é alarmante o fato inédito de que o presidente do Brasil, que já desenvolvia uma irracional campanha contra as unidades de conservação, agora, e com ainda mais sanha oriente sua verborreia superficial contra os indígenas, pretendendo espoliar as terras que com tanta dificuldade conseguiram que lhes fossem devolvidas e que, até certo ponto, controlam. Assim, nesta nota, se propõe a criação de um programa nacional de assistência técnica e financeira para o desenvolvimento durável das terras indígenas.
Muita terra para pouco índio?
Até agora os países amazônicos e o Brasil têm reconhecido que os índios amazônicos têm direitos sobre a terra dos seus antepassados. E, de fato, muita terra já lhes foi transferida embora, em geral, de modo condicionado. Não obstante seja questão de direito, vem criando percepções negativas na sociedade o fato de que a população de indígenas amazônicos seja pequena em relação à extensão de terra que lhe é reconhecida e em relação à população nacional. Dentre elas, os consabidos ditos de “muita terra que não produz nada” e, em consequência, “muita terra para pouco índio”. É dessas percepções que personagens como o atual presidente do Brasil se aferram para suas campanhas, cujas intenções são claramente favorecer as pretensões de terceiros sobre as terras indígenas, em especial para atender interesses de expansão agropecuária e da mineração. E, claro, também para geração de energia hidráulica, linhas de transmissão, estradas, e outras infraestruturas. Ele afirma que isso é para melhorar a economia amazônica, mas é óbvio ululante que, primeiro, é para favorecer empresas e políticos.
Excetuando o “pequeno detalhe” de que a maior parte da terra indígena serve de forma direta e inquestionável para preservar a biodiversidade e para manter os processos biogeoquímicos, o resto da terra indígena é pouco ou mal aproveitada. E nem esses valiosos serviços ambientais são devidamente valorizados e recompensados. Esse é o principal argumento que suporta as diatribes do mandatário. Lamentavelmente, é costume no Brasil criar as reservas ou outras categorias de terras indígenas e, logo, abandoná-las a sua própria sorte. No melhor dos casos se habilita um posto da Fundação Nacional do Índio (Funai) e depois de muita insistência, se instala uma escolinha e um posto médico. Se as invasões de madeireiros, garimpeiros e agricultores sem-terra são muito escandalosas, a Funai pode solicitar a intervenção da força pública, que atua brevemente e se retira em geral sem resolver o problema de fundo. Assim, populações que viveram isoladas por muito tempo e cujo estilo de vida correspondia em grande medida ao de milhares de anos atrás foram e ainda são forçadas, em poucas gerações, as vezes duas ou três, a se adaptar à vida das maiorias dos séculos XX e XXI. Ou seja, algo impossível sem suporte nem proteção da autoridade competente. E na ausência destas ocorre o que todos sabem de sobejo. Ao invés de apoio e assistência, os índios ficam expostos às tentações trazidas pelos madeireiros, garimpeiros e outros invasores que enganam e “corrompem” aos líderes e tudo termina com a destruição, pilhagem e desperdício do patrimônio natural e a perda ou degeneração do patrimônio cultural. Os índios ficam cada vez mais dependentes, mais pobres e sem esperança. Conflitos armados acontecem com resultados trágicos. Os jovens, sem emprego nem oportunidades, abandonam a aldeia e se transformam em operários ou serventes.
O que fazer?
Esta realidade, em maior ou menor grau, é a de todos os indígenas amazônicos e, em todos os países da região, pode ser mudada. A resposta consiste em brindar aos povos indígenas uma oportunidade concreta e realista de se incorporarem à economia nacional praticando desenvolvimento durável, ou seja, produzindo, mas preservando razoavelmente os ecossistemas e mantendo a essência da sua relação ancestral com a floresta. Isso requer uma nova atitude dos próprios indígenas e, em especial, dos que tratam do tema, além dos políticos, governos e suas agências. Não é impossível. E beneficiaria, claro, os indígenas e também toda a sociedade.
Deve se começar reconhecendo que grande parte dos territórios indígenas, não menos da metade e talvez três quartas partes, têm vocação de conservação do patrimônio natural da nação. Este fato destrói o superficial argumento de que “existe pouco índio para tanto mato”. Porém, se esses povos vão fornecer um serviço tão importante para o resto dos cidadãos do país e do mundo, devem ser remunerados. Isto é pura e simples justiça. Já foi ensaiado numa escala pequena, no Peru. No entanto, deveria ser convertido numa rotina que, ademais, seria aplicada igualmente para as unidades de conservação. Para isso, o governo deve fazer sua parte, promovendo estudos ecológicos e econômicos convincentes –que em grande medida já existem– e obtendo através de negociações e decisões firmes o financiamento da parcela indígena para a mitigação da mudança climática, quer seja através de pagamentos fruto de acordos internacionais, impostos nacionais, negócios nacionais e internacionais ou outros mecanismos que já estão sendo discutidos. As propostas devem ser bem desenvolvidas e de mostrar aos financiadores evidências de que, realmente, a floresta está preservada e cumpre a função que se lhe atribui. Assim, já se lograriam duas vantagens: esclarecer a função da maior parte da área das terras indígenas; e dar aos índios uma retribuição concreta, em dinheiro, pelo uso de parte das suas terras para o bem comum e pelo trabalho que terão em evitar que esses serviços sejam destruídos por invasores que desmatem ou degradem a floresta.
Ainda fica muita terra para os índios aproveitarem. No caso brasileiro, ao redor de 25 milhões de hectares. O que fazer nelas? O primeiro e mais lógico uso a dar a essa terra é dedicá-las a manejo florestal e produzir, de modo sustentável, quantidades moderadas de madeira de lei fina, certificada e de altíssimo valor, principalmente para fabricação de móveis de luxo. Ninguém melhor do que os indígenas para explorar cuidadosamente a floresta que conhecem desde sempre. A exploração florestal bem-feita vai muito bem com a mentalidade e os costumes ancestrais. Obviamente dever-se ia começar em pequena escala, com grande apoio técnico e financeiro ou com ajuda de madeireiros honestos — que existem — sob supervisão de instituições públicas. Duas ou três reservas indígenas contíguas podem se associar e dispor de assessoramento, equipes e maquinarias conjuntas. No começo, necessitarão muita assistência tanto técnica como organizativa e contábil. Como demonstrado também no Peru, logo conseguem operar bem e com lucro.
Há muito mais que podem fazer os índios para melhorar as suas economias, a economia regional ou nacional e a sua qualidade de vida. Por exemplo, nas reservas existe muita vegetação secundária ou capoeira, devido à prática tradicional da roça e queima. Nessas largas rotações é possível produzir madeira de crescimento rápido e de baixo valor, embora com demanda crescente. Tratam-se de técnicas simples e já bem conhecidas, sem grandes investimentos. Claro, existem ilimitadas possibilidades de colheita de produtos florestais secundários, desde borracha natural e outras resinas, nozes e frutas, ou de entrar no inesgotável tema das plantas funcionais, como as medicinais e ornamentais. A caça e a pesca têm amplas possibilidades se praticadas sob manejo estrito, como antes os indígenas faziam ou em manejo semi-intensivo. A colheita e criação de insetos, por exemplo, é uma atividade rentável e em pleno crescimento em outros países amazônicos. As áreas preservadas servem de refúgios e centros de repovoamento. Não se deve esquecer dos maravilhosos artesanatos indígenas que os povos amazônicos sabem criar e produzir e que, se adequadamente promovidos, conservando suas origens, poderiam ter demanda mundial. O problema principal em todas essas atividades é conseguir que passem da etapa de auto satisfação de necessidades ou de atividade explorada por terceiros a outra em que se geram excedentes para a própria comunidade e, claro, receber apoio para poder negociá-los em condições justas.
Não existe nenhuma razão para que os indígenas não façam agricultura, pecuária, silvicultura e piscicultura. É evidente que o autor não considera que as reservas indígenas devam ser desmatadas para grandes especulações agrícolas, sejam próprias ou alheias, como no caso de plantios industriais de soja, algodão, milho, dendê ou pecuária de corte. Este é um caminho arriscado e sem retorno, o qual atentaria contra uma parte da lógica de devolver florestas aos índios. Em alguns lugares, a prática já começou alugando terra a empresários da soja ou associando-se a estes, com resultado padrão de forte desmatamento e benefícios magros e passageiros para os indígenas. Mas é evidente que já existe terra desmatada nas reservas e que, na medida em que suas populações aumentem, vão necessitar mais terra para cultivar, tanto para sua própria alimentação como para comercializar. Novamente deveriam escolher os produtos tradicionais mais rentáveis. Os indígenas domesticaram plantas que hoje têm uma demanda enorme, como o açaí e a pupunha e têm dúzias como o cupuaçu ou o pequi, que ainda esperam ser melhor conhecidas no exterior. Planos de negócio bem ponderados podem abrir muitas possibilidades para todas essas espécies. A silvicultura, ou seja, a plantação de árvores para madeira ou outros usos é outra opção disponível, que como o manejo das capoeiras, se feita em escala discreta, não acarreta riscos. O mesmo é válido para a piscicultura, especialmente se é feita com espécies nativas, melhor em lagoas naturais e é alimentada com produtos excedentes locais. Ter animais domésticos não é pecado. O que não é bom é desmatar ainda mais para criá-los. Tal como no caso da agricultura intensiva, de commodities, a produção de carne, como pretende o presidente Bolsonaro, é definitivamente inadequada. Não obstante, feita em escala que não comprometa a floresta, é até desejável para melhorar a qualidade da alimentação a nível da aldeia. Tudo é questão de equilíbrio.
É evidente que o turismo/ecoturismo é outra possibilidade que, como o manejo florestal e outras potencialidades, requer investimentos substanciais em treinamento e técnica. Por isso, espera-se que os indígenas recebam apoio profissional tanto nas técnicas turísticas e hoteleiras como para a promoção de negócios. Sem esquecer que toda iniciativa deve começar com cuidado e em pequena escala, até que os próprios indígenas sintam que podem dar outro passo, pouco a pouco. Finalmente, vale a pena mencionar a mineração. Claro, não é desejável que seja feita em reservas indígenas nem, na verdade, em lugar algum. Inevitavelmente, a mineração traz danos. Não obstante, não tem lógica que outros, no limite das reservas indígenas possam fazê-lo legal ou ilegalmente e que os indígenas estejam proibidos. Por isso, em alguns casos a assistência técnica deveria dispor de engenheiros de minas para desenvolver projetos que sejam ecologicamente aceitáveis. Claro, deverão ser precedidos de estudos de impacto ambiental.
Um programa nacional de assistência técnica e financeira
Nada do que se escreveu até aqui é novo. Todas essas potencialidades e muitas outras já têm sido reiteradamente descritas. Apesar do maltrato e abandono a que são submetidos e do pouco tempo que tiveram para se adaptar ao mundo de hoje, sabemos que os indígenas têm todas as condições e qualidades para participar do desenvolvimento amazônico e de fazê-lo de uma forma construtiva. Por isso, é surpreendente que na longa história da FUNAI, ela nunca fez nada sério para promover o desenvolvimento econômico dos seus “protegidos”. Ou seja, o único empecilho para que os indígenas contribuam ao futuro nacional é lhes oferecer oportunidades verdadeiras.
Como é evidente, praticar manejo florestal e outras das atividades econômicas que se mencionaram aqui, requer uma estrutura administrativa que ainda não existe e que deveria se instalar progressivamente nas reservas ou comunidades indígenas que a aceitem. A resposta poderia assumir a forma de um programa nacional de assistência técnica e financeira de largo prazo para o desenvolvimento dos povos originários amazônicos, envolvendo o aparelho governamental. Um programa assim deveria dispor de uma coordenação central, com representação indígena, para dar apoio às Terras Indígenas e fazer gestões intergovernamentais. A parte mais importante da ação deve ser desenvolvida de modo sustentável nas próprias comunidades ou reservas. Nelas se estabeleceria um núcleo ou unidade técnica que disponha de um pequeno grupo de profissionais das áreas chaves como agrônomos, veterinários e engenheiros florestais. As equipes variariam com o potencial dos recursos naturais e com a localização de cada reserva. Outras profissões especializadas, como economistas e contadores, poderiam ser rotativas ou atender sob demanda. As equipes básicas devem estar instaladas permanentemente in situ para se familiarizar com a realidade e a população local que vão ajudar. Para isso devem ser polivalentes, bastante autônomas e com orçamento próprio, capacitados tanto para a parte técnica como para capacitar e especialmente para entusiasmar e envolver dos líderes aos mais jovens, e assim mesmo para preparar planos de desenvolvimento comunitário e/ou planos de negócios, nos que os indígenas devem ter o papel principal.
O custo anual para atender inicialmente, por exemplo, umas 30 unidades de assistência técnica estrategicamente distribuídas, considerando instalação, operação e pagamento muito adequado de três especialistas por unidade, seria inferior a 400 milhões de reais por ano. A partir do segundo ano deveria se dispor de acesso a recursos financeiros ou a um fundo –que pode ficar no Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES)— para a atender os projetos já desenvolvidos. A disponibilidade destes recursos deverá aumentar em proporção à demanda. Com base na experiência obtida, o programa deveria ser ampliado gradualmente até abarcar todas as reservas indígenas que assim o desejem. Sob quaisquer parâmetros, inclusive no futuro, o montante de dinheiro necessário para esse plano é pequeno, em especial para os resultados que podem se esperar em termos de ambiente, desenvolvimento econômico e paz social. Além disso pode-se começar com uma escala experimental. Os recursos sairiam do orçamento federal e dos estaduais, ou também podem ser providos por empréstimos brandos e doações de fontes internacionais. Pode parecer difícil se colocar em prática algo como o programa mencionado. Mas não é. Encaixa perfeitamente dentro das responsabilidades dos governos federal e estaduais e, assim mesmo, está dentro das possibilidades orçamentárias do país, que ano a ano gasta muitas vezes mais do que isso com assuntos menos essenciais.
É tempo de tratar os indígenas amazônicos com o respeito que merecem. Eles são cidadãos como os demais e têm o mesmo direito dos demais a uma vida melhor. No entanto, necessitam de ajuda, honesta e de boa qualidade, para dar a partida nesta empreitada. Eles cuidam para os demais de um tesouro vivo de valor incalculável, além de manter serviços essenciais para a humanidade. Nada mais justo que apoiá-los nesta fase inicial. E não há melhor investimento ou perspectiva para nós, os demais cidadãos.
*Marc Dourojeanni é consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interamericano de Desenvolvimento e fundador da ProNaturaleza
Fonte: O Eco