E se uma espécie se extinguir?
*Rafael Loyola
Qual a importância de uma espécie na natureza? Essa é uma pergunta simples de se fazer, mas bem complicada de responder. Os ecólogos ‒ profissionais da ecologia – estudam a distribuição das espécies e suas relações no ambiente onde eles vivem desde o início do século XX. Essa pergunta sempre esteve no cerne dos estudos ecológicos.
A pergunta é difícil não só porque é preciso conceituar algumas coisas antes de respondê-la, mas também porque é preciso estudar a espécie na natureza para descobrir como ela interage com o meio onde está, com indivíduos da sua espécie e com as outras espécies que ali vivem. E essas interações, como você sabe, são inúmeras.
Não espero solucionar uma questão tão complexa nessa coluna, obviamente. Mas outro dia me perguntaram o que quer dizer, em termos práticos, a extinção de uma espécie. A pergunta é honesta e achei que valia a pena um esforço inicial para respondê-la.
Vamos começar com uma coisa que parece idiota, mas até hoje gera discussões: o que é uma espécie afinal? Nas ciências biológicas, temos muitos conceitos para espécie e o mais comum ‒ que talvez você conheça – é o de que uma espécie é um conjunto de indivíduos capaz de se reproduzir por meio do sexo entre si e deixar descendentes férteis. Esse é o chamado conceito biológico de espécie. Ele, de cara, tem problemas: como classificar os indivíduos que se reproduzem sem fazer sexo? Sim, isso existe (eu diria, infelizmente). Viu que não é tão simples quanto parece? Mas vamos seguir com esse conceito.
Agora vamos partir para o outro problema que é onde a espécie está e o que ela faz na natureza. Para isso, os ecólogos costumam usar o conceito de nicho ecológico. Uma boa definição para o nicho é pensar em todo o conjunto de condições (presença de luz, água ou nutrientes) e recursos (alimento, abrigo, fêmeas/machos para acasalamento) necessários para que uma espécie sobreviva e se reproduza na natureza. Embora suficientemente amplo para que possamos entender a espécie, esse conceito, na prática, deixa a nossa vida difícil. Como é que vamos saber (um ecólogo diria mensurar) todas essas condições e recursos? É virtualmente impossível saber tudo isso para uma espécie porque as variáveis no mundo natural são tantas que jamais poderíamos prever tudo o que precisa ser estudado. Como boa parte da ciência usa uma abordagem reducionista – vamos estudando os pedaços para entender o todo – felizmente, ainda podemos aprender muito sobre a natureza e as espécies na ecologia. Mas essa amplitude de variação nos deixa em maus lençóis na hora de responder à pergunta sobre a importância de uma espécie em particular. Retomarei esse ponto já já.
Falta ainda deixar claro o que chamamos de extinção. É intuitivo: a espécie deixa de existir. Veja que a extinção não é o mesmo que a morte porque vários indivíduos de uma espécie podem morrer, mas a espécie ainda existiria, pelo menos até que o último indivíduo desaparecesse. Então, um bom conceito é a morte do último indivíduo (conhecido) de uma espécie, de maneira que ela deixe de existir no planeta. Triste.
Agora sim, qual é o problema de uma espécie desaparecer do planeta? Em termos práticos, quais as consequências dessa extinção? Isso é só um problema ético ou moral?
Bom, sim e não. Sim porque é óbvio que é um problema moral e que esbarra na nossa ética. Por ser como somos, podemos extinguir uma espécie, mas não devemos – isso é ética. Posso, mas não devo. Ser responsável pelo desaparecimento de uma espécie no planeta não é algo que queremos ter no currículo, embora já carreguemos nas costas uma lista enorme de espécies que a humanidade extinguiu. A humanidade, aliás, progrediu na definição de limites para o sofrimento humano, condena a escravidão, as guerras. Claro que tudo isso segue existindo, infelizmente, mas ninguém acha bonito escravizar alguém porque esse não e nosso padrão moral, pelo menos hoje em dia. Então, o direito à vida – e mais que isso, à existência – é um valor que carregamos conosco e a extinção de uma espécie tem consequências morais e éticas.
Agora, é possível que essa extinção tenha também consequências econômicas, por exemplo. Se for uma espécie da qual fazemos uso e esse uso não for sustentável, a espécie se extinguirá e não poderemos usufruir desse bem (ou serviço) que a natureza presta. Isso acontece com plantas por meio das quais obtemos madeira, medicamentos etc. Acontece com peixes (os famosos estoques pesqueiros), que estão declinando a olhos vistos e fazem parte da dieta de milhões de pessoas no mundo. Acontece com abelhas e outros polinizadores, que, uma vez extintos, trazem insegurança alimentar para países inteiros hoje em dia. Acontece com animais carismáticos que geram recursos de diferentes maneiras (como elefantes – sim, existiam muitas outras espécies de elefantes e que já extinguimos). A lista é enorme, mas esse ponto de vista é bastante utilitarista.
E há um problema associado à extinção de várias espécies: o fato de não conseguirmos estudar todas elas e suas relações na natureza. Ou seja, para uma boa parte da biodiversidade da Terra, a resposta para a pergunta “O que acontece se essa espécie se extinguir?” é um claro e retumbante “Não sabemos”. Desde meados do século passado, ecólogos tentam entender o papel das espécies no ambiente. Em alguns casos, como acontece com predadores de topo da teia alimentar (p. ex., onças, gaviões, algumas estrelas do mar), essa extinção pode levar a um desequilíbrio muito grande que acaba trocando a fauna e a flora de um determinado ambiente. Algumas dessas espécies são chamadas “espécies-chave” por ajudarem na estruturação do ambiente onde vivem.
Sabe aquele brinquedo no qual você vai tirando varetas, uma a uma, até que, em um dado momento tudo desmorona? Tudo desmorona porque você tirou uma vareta errada. E não precisa ser uma em particular. Há um momento em que qualquer vareta retirada pode levar ao colapso da estrutura. Isso também acontece na natureza. Então, em certa medida, o meio ambiente tem uma redundância que é boa e isso é o que garante que nossos ambientes naturais ainda estejam de pé mesmo com a extinção de várias espécies. Mas o momento da ruína pode vir a qualquer hora. Ele varia de lugar para lugar, ecossistema para ecossistema… mas uma hora vamos tirar a vareta errada e perder o jogo.
Assim como não podemos simular o que acontece com todas as varetas à medida que vamos jogando, não podemos prever a consequência das extinções à medida que vamos alterando o planeta e desaparecendo com espécies.
Por precaução, eu diria que é melhor não brincar com esse jogo. Não conhecemos todas as varetas, não sabemos com quais outras elas se tocam, não podemos prever quando vamos perder. Mas uma coisa é certa: nesse jogo, ninguém ganha. Na verdade, o jogo só acaba quando tudo desmorona. Será que ele vale à pena?
*Rafael Loyola é Diretor Científico da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável (FBDS), professor da Universidade Federal de Goiás e membro da Academia Brasileira de Ciências.
Fonte: O Eco