As energias renováveis avançam, mas aquém das metas sociais e climáticas
*José Eustáquio Diniz Alves
As energias renováveis decuplicaram nos anos 2000 e são a grande novidade da matriz energética global do século XXI e, de certa forma, já antecipam o fim do mundo dos combustíveis fósseis, embora ainda exista um longo caminho pela frente.
A capacidade de geração de energia renovável quadruplicou somente nos últimos 10 anos (2008-2018) a partir de um investimento estimado em US$ 2,6 trilhões, como mostra o relatório “Global Trends In Renewable Energy Investment 2019”, do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (UNEP), elaborado em parceria com a Frankfurt School of Finance & Management e a BloombergNEF.
Todavia, a velocidade desse crescimento ainda está muito aquém do que os pesquisadores dizem ser necessário para descarbonizar a economia e manter o aquecimento global sob controle. Para cumprir o objetivo do acordo climático de Paris de manter o aquecimento global abaixo de 1,5 graus Celsius, o Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) considera que o mundo precisaria investir uma média de cerca de US $ 3 trilhões a US $ 3,5 trilhões todos os anos entre 2016 e 2050.
De todos os setores de energia renovável considerados, a energia solar liderou o salto do começo da mudança da matriz energética, com US $ 1,3 trilhão investidos ao longo da década. Segundo o relatório, a capacidade de energia solar deve atingir 638 gigawatts até o final de 2019, em comparação com apenas 25 gigawatts em 2010. É capacidade suficiente para produzir toda a eletricidade necessária a cada ano para abastecer 100 milhões de residências.
Os avanços tecnológicos tornaram os painéis solares menores, mais baratos de fabricar e mais eficientes. Além disso, o custo de financiamento e de instalação de energia solar caiu, levando a uma grande expansão das instalações solares em todo o mundo.
O gráfico abaixo mostra que a China liderou a corrida no valor investido em capacidade de energia renovável no mundo, com investimento de US$ 758 bilhões (31% do total), entre 2010 e o final do primeiro semestre de 2019. A china lidera com destaque os investimentos em energia renovável, mas também lidera com grande margem as emissões globais de gases de efeito estufa. Os EUA aparecem em segundo lugar nos investimentos, com US$ 356 bilhões (14% do total) e o Brasil aparece em 8º lugar, com investimentos de US$ 55 bilhões.
A energia renovável descentralizada tem a vantagem de ser mais democrática, mais limpa e até mais pacífica. Num mundo futuro com ampla oferta de energia solar e eólica as guerras pelo petróleo serão apenas assuntos para as exposições dos museus e os cursos de história. Depois de tantas guerras pelo controle dos combustíveis fósseis – como a Guerra do Iraque que matou milhares de pessoas e teve um custo de trilhões de dólares – agora foi a vez da Arábia Saudita, maior exportadora mundial, de sofrer ataques em seu território. No dia 14 de setembro, duas instalações da principal companhia petrolífera da Arábia Saudita teve que suspender a produção de cerca de 5,6 milhões de barris de petróleo dia (5% da produção global). Um grande incêndio ocorreu em Abqaiq, onde fica a maior fábrica de processamento de petróleo do mundo, e outro no campo de petróleo de Khurais. Ambos operados pela gigante estatal saudita Aramco. A fumaça pôde ser vista do espaço.
Os rebeldes iemenitas houthis – que são apoiados pelo Irã no conflito que acontece no Iêmen – disseram ter enviado dez drones para atacar as instalações da Aramco. É a primeira vez que são usados, nesta proporção, os “robôs assassinos” para fins militares, como eu já havia previsto há algum tempo (Alves, 16/08/2017). A monarquia saudita e o governo dos EUA acusam o Irã pelos ataques. O clima de insegurança aumentou e não está descartada uma guerra envolvendo os dois maiores países islâmicos do Oriente Médio que vivem de energias fósseis. O fato é que o preço do petróleo já subiu e pode ser o estopim que faltava para catalisar o início de uma recessão econômica internacional.
Como mostrou Steve Hanley (Cleantechica, 16/09/2019), o mundo poderia ser mais seguro e pacífico se cada país fosse capaz de atender internamente suas necessidades energéticas, usando apenas a abundância natural de luz do sol, vento, geotérmica, hidrelétrica ou maré. A governança global mudaria se a Europa não tivesse que depender da Rússia para o gás natural aquecer suas casas no inverno. Se os EUA não precisassem degradar suas reservas de vida selvagem e parques nacionais para poder se orgulhar de ser o maior exportador de energia do mundo. Se não tivéssemos que aspirar a governos totalitários como a Arábia Saudita, que corta seus oponentes com serras de osso e descarta as peças em cubas de ácido?
Hanley considera que é um erro os líderes mundiais torceram as mãos e lamentaram que o custo da transição para a energia renovável seja alto demais. Pode custar trilhões, eles choram. No entanto, o projeto “Costs of War”, do Instituto Watson de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade Brown, constata que os EUA já gastaram mais de US$ 5,6 trilhões em operações militares na era pós-11 de setembro. Além disso, desde 2001, os militares dos EUA adicionaram 1,2 bilhão de toneladas de dióxido de carbono à atmosfera. Isso é mais do que muitas nações. Todo esse dinheiro e todas essas emissões não levam em consideração o número de mortos nos militares que morreram ou foram feridos durante as guerras ou o ônus colocado sobre milhões de civis que foram deslocados como resultado deles.
Desta forma, mudar das fontes fósseis para a energia renovável é mais do que reduzir as emissões de carbono. Trata-se de desmantelar as atuais construções geopolíticas que apoiam a noção de que o acesso ao petróleo deve ser mantido a todo custo. O petróleo distorce grosseiramente as relações internacionais. A energia renovável pode reequilibrar a estrutura econômica do mundo. As nações não mais olhariam para os recursos naturais de seus vizinhos e planejariam capturá-los por si mesmas. Os déspotas nunca mais governariam seus países como feudos feudais sustentados por fortunas surpreendentes à base de petróleo. A energia renovável não apenas pode reduzir as emissões de carbono, mas também potencialmente eliminar uma das principais causas de conflito entre as nações.
Voltando ao relatório da UNEP, o documento estima que as emissões globais de gases de efeito estufa do setor de energia teriam sido 15% maiores em 2018, não fosse o aumento da capacidade de energia renovável. No entanto, também observa que as emissões ainda aumentaram 10% de 2009 a 2019 em função do crescimento populacional e econômico global.
A concentração de CO2 estava em 404 ppm em maio de 2015, saltou para 407,7 ppm em maio de 2016, atingiu 409,7 em maio de 2017, alcançou 411,2 ppm em maio de 2018. O recorde foi atingido em maio de 2019 com 414,7 ppm. A variação de maio a maio, no último ano, foi de 3,5 ppm, um recorde preocupante que acontece mesmo com o avanço das energias renováveis.
Embora o aumento da concentração de CO2 na atmosfera não apresente uma tendência monotônica, a subida acontece de forma consistente ao longo das décadas. Na última década do século XX (1991-00) o aumento da concentração de CO2 na atmosfera foi de 1,5 ppm. Na primeira década do século XXI o aumento foi de 2,0 ppm. Em 2015 e 2016 o aumento anual de CO2 foi de 3,0 ppm, caiu para 2,39 ppm em 2018 e deve bater o recorde em 2019 com algo em torno de 3,4 ppm.
Embora o avanço das energias renováveis seja uma grata surpresa e esteja ocorrendo num ritmo mais rápido do que o previsto no início do atual século, a humanidade continua aumentando as emissões de gases de efeito estufa a uma taxa alarmante.
De fato, o mundo baseado na energia renovável é não só desejável com é inevitável. Por isto se diz: “O futuro será renovável ou não haverá futuro”. Contudo, mesmo que o mundo consiga chegar a 100% de energia renovável em 2050, a concentração de CO2 na atmosfera (que já está em torno de 415 ppm) pode ultrapassar 500 ppm até 2050 e tornar o aquecimento global incontrolável nos limites necessários para evitar uma tragédia ambiental e civilizacional.
Além do mais, existem muitas dúvidas se o aumento da capacidade instalada de energias renováveis será capaz de funcionar em uma rede inteligente global. Gail Tverberg (30/01/2017) considera que existe muita ilusão sendo vendida em nome das energias “limpas”. Embora, sem dúvida, o avanço da transição energética é melhor do que a dependência dos combustíveis fósseis. O sol e o vento são recursos naturais abundantes e renováveis, mas, certamente, não podem fazer milagres e nem evitar o imperativo do metabolismo entrópico, como ensina a escola da Economia Ecológica.
A humanidade já ultrapassou a capacidade de carga do Planeta. Como alertou o ambientalista Ted Trainer (2007), as energias renováveis não são suficientes para manter o crescimento exponencial da expectativa das pessoas por um alto padrão de consumo conspícuo. Trainer prega um mundo mais frugal, com decrescimento demoeconômico, onde as pessoas adotem um estilo de vida com base nos princípios da Simplicidade Voluntária.
O mundo precisa urgentemente descarbonizar a economia e recuperar os ecossistemas, além de ampliar as áreas anecúmenas e promover o bem-estar de todas as espécies vivas do Planeta. Zerar o desmatamento e as queimadas, plantar árvores e recuperar as florestas é uma necessidade urgente.
A mudança da matriz energética é uma condição necessária, mas não suficiente para enfrentar a crise climática e ecológica. É também uma condição necessária, mas não suficiente para evitar as guerras pelo petróleo. Evidentemente, a revolução econômica e comportamental para salvar a vida no Planeta vai muito além do simples crescimento das energias renováveis. Mas não haverá um mundo pacífico e sustentável se não for planejado o fim do mundo dos combustíveis fósseis e dos privilégios sociais que o petróleo sustenta.
Sem dúvida, o Planeta precisa de energia renovável para descarbonizar a economia e mitigar o aquecimento global, mas também para renovar as estruturas do poder econômico e político que se encontra nas mãos de uma elite social que se assenta numa hierarquia privilegiada, excludente, não renovável e fóssil.
*José Eustáquio Diniz Alves é Doutor em demografia
Fonte: EcoDebate