Indígenas do Xingu mostram os impactos de Belo Monte sobre seu cotidiano
*Amélia Gonzalez
Os indígenas se viram muito bem no escuro quando estão em suas aldeias. Acendem tochas, andam em grupos, dormem cedo, acordam cedo. Para cozinhar, usam o fogo. Banham-se nos rios. Se precisam de energia, em geral pedem emprestado ao sol ou aos ventos.
Já a civilização ocidental é cada vez mais dependente de energia. Não gosta de escuridão, fica até tarde em computadores, inventou fornos mais rápidos que precisam ser conectados a tomadas, elevadores e, em geral, diverte-se e se relaxa em banhos de chuveiro demorados, com água bem quente. Chuveiros elétricos.
Mas, quando é preciso fazer obras para obter eletricidade a partir do movimento das águas dos rios, quem está no caminho e é obrigado a ceder seus territórios são os índios.
É uma leitura rápida, talvez superficial, de um imbróglio intenso e duradouro que põe, de um lado, a necessidade de respeitar um estilo de vida construído, no fim das contas, por todos nós. E, do outro, uma civilização que não precisa de tantos bengalas, que reconhece sua força na relação entre o corpo e o ambiente em volta. O que anda faltando, de nossa parte, é ter ouvidos mais apurados e maior respeito a quem tem mais sabedoria para lidar com o natural. A relação entre grandes empresas que constroem barragens em rios e populações indígenas, no entanto, não tem sido assim. Há conflitos, há muitas queixas por parte de quem sempre viveu em paz com a natureza e, agora, tem que suportar a morte de rios e peixes na porta de casa.
São emocionantes os relatos de indígenas que, de hora para outra, se veem sem seus territórios e que, de repente, se percebem em meio a mega empreendimentos que transformaram os rios em possibilidade de lucro, as terras em fornecedoras de matérias primas para outros delas se beneficiarem. Há que se levar em conta que é, verdadeiramente, difícil para nós, que nascemos e fomos criados em outra cultura, entendermos isso. O que não precisa faltar, nessa história, é o respeito.
Desde que foi projetada, nos anos 70, a Hidrelétrica de Belo Monte, que está sendo construída na bacia do Rio Xingu, próximo ao município de Altamira, no Pará, inspira nenhuma simpatia por parte dos xinguanos e dos ambientalistas. Em potência instalada, ela será a terceira maior do mundo, capaz de produzir energia para 10% do território nacional. Exigiu, até o ano passado, R$ 38,6 bilhões de investimentos públicos e privados.
Com um montante de dinheiro desses, fica difícil imaginar o travamento do projeto. Mas as tentativas para isso são recorrentes, até porque, também não fica difícil imaginar os impactos que uma obra desse porte traz para a região, para as terras indígenas que permeiam o Rio Xingu. Para os indígenas que sempre tiraram do rio seu sustento, que têm com ele uma relação próxima.
São muitas as contrapartidas exigidas ao consórcio que constrói a usina, sobretudo no que se refere ao uso das águas do rio. Mas o que tem sido pouco discutido são as mudanças no modo de vida do povo Juruna. Pelo menos no entender de quem vive ali, na Volta Grande do Xingu, região que, segundo a cultura indígena, foi criada “por um sopro de Deus”. O povo Juruna é canoeiro, e sempre se deslocou pelas ilhas da região do Xingu, de onde se origina. Em seus relatos, dá conta de muitos sacrifícios, sempre fugindo de seus predadores, mas também tem na memória momentos de muita fartura, de muito peixe, farinha e óleo de babaçu, tudo conseguido no rio e em volta dele.
Mas esta abundância, desde que as obras começaram, tem sido cada vez menor. E, embora tenha já muitos estudos e relatórios que mostram os impactos sobre o entorno, estava faltando um documento, feito a próprio punho, que mostrasse a influência da Usina de Belo Monte sobre o dia a dia de pessoas que sempre viveram do Rio Xingu. Não falta mais. Foi lançado esta semana o estudo “Xingu, o rio que pulsa em nós”, que se autointitula um “Monitoramento independente para registro de impactos da UHE Belo Monte no território e no modo de vida do povo Juruna (Yudjá) da Volta Grande do Xingu”.
Com depoimentos contundentes e muitos dados, entre outras coisas o relatório põe em xeque o Hidrograma de Consenso, uma ferramenta criada pela Eletronorte, empresa que realizou os primeiros estudos para aproveitamento hidrelétrico em Belo Monte, a fim de regular o quanto será possível baixar o volume de águas do rio, de maneira sustentável socioambientalmente, para viabilizar a usina. Ocorre que o tal Hidrograma não parece levar em conta detalhes que são importantes para quem está naquelas terras há muito tempo. Por exemplo, há uma determinada espécie de peixe que só se alimenta de uma fruta que cai das árvores nas águas do rio. Com a vazão, as frutas caem no seco e esses peixes estão morrendo de fome.
“As frutas estão caindo no seco. Isso aconteceu de um jeito muito intenso em 2016. As tracajás comem as ramas nas áreas alagadas e engordam, já o pacu é mais complicado, porque ele só engorda se comer os frutos que caem. Se os frutos caírem no seco, os pacus nunca mais vão engordar e irão morrer todos”, diz Gilliarde Juruna, cacique da aldeia Mïratu, no relatório.
A extinção de uma espécie de peixe, que pode parecer coisa menor para nós, arraigados na civilização ocidental, para os índios é assunto de extrema importância. E não poderia deixar de ser assim. Afinal, são eles que estão ali, vivendo as consequências nefastas de um tipo de desenvolvimento que para eles de pouco – ou nada – servirá. E os Juruna consideram que a civilização ocidental menospreza os ensinamentos que os povos e comunidades tradicionais têm.
“Em especial, o que se observou em 2016, batizado pelos Juruna (Yudjá) como o ‘ano do fim do mundo’ por conta das consequências nefastas dos baixos níveis de vazão do Xingu, deixou claro que a implantação de tal esquema hidrológico tem o potencial de, em poucos anos, tornar a Volta Grande do Xingu irreconhecível”, diz o estudo, escrito por Juarez Pezzuti, Cristiane Carneiro, Thais Mantovanelli e Biviany Rojas Garzón, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
O monitoramento, feito de maneira independente, não é para ser usado como arma, e sim como ferramenta de diálogos inclusivos. O resultado de cinco anos de pesquisa, que envolve o conhecimento tradicional construído pelo povo Juruna sobre a região da Volta Grande do Xingu, é impressionante e merece, de fato, ser lido com atenção por quem tem interesse no empreendimento.
“Obrigar um povo canoeiro a ter de viver no seco é uma situação de extrema mudança nas práticas cotidianas, cosmológicas, culturais e sociais. Como disse dona Jandira, da aldeia Miratu: “nós, Juruna, não temos pés, temos canoa para navegar no rio, assim nós somos”, diz o estudo, publicado com o apoio de algumas organizações internacionais.
Aqui vale lembrar, para dar um desfecho à prosa, que um relatório recentemente escrito pela Relatora Especial das Nações Unidas para os Povos Indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, mostrou que os indígenas são os “gestores efetivos de biodiversidade e conservação” e “guardiões primários da maioria das florestas tropicais remanescentes do mundo e dos hotspots de biodiversidade”.
Acho importante deixar claro que a ideia não é menosprezar, tampouco, tudo aquilo que a civilização ocidental tem – e não é pouco – a ensinar para os indígenas e povos tradicionais. O que não precisa é menosprezar uns pelos outros. Diante de todas as ameaças que a humanidade vem sofrendo, não custa agregar, em vez de dividir, conhecimentos.
*Amélia Gonzalez é jornalista
Fonte: G1