Opinião

O bicudinho quase foi para o brejo

O bicudinho quase foi para o brejo
Bicudinho-do-brejo fêmea/ Crédito: Fabio Olmos

*Mauro Galetti

Era a primavera de 1995 e o último dia em que Bianca Reinert e Marcos Bornschein (o Marcão), dois jovens ornitólogos, armariam redes de neblina num brejo cheio de mosquitos em Pontal do Sul, litoral do Paraná. Os dois pesquisadores não tinham mais dinheiro para continuar suas pesquisas sobre a ecologia e comportamento do carretão (Agelasticus cyanopus), uma ave típica de pântanos da Mata Atlântica. O pântano cada dia ia sendo empurrado e aterrado para construções de casas de veraneio e não ia mais sobrar brejos para se estudar. Depois de quatro anos gastando do seu próprio bolso, Bianca e Marcão abriam então pela manhã a última rede de neblina. Foi aí que, por um milagre, uma ave minúscula passou por debaixo da rede de neblina. Espantados, logo perceberam que como um gnomo ou um pé-grande, poderia ser uma ave desconhecida pela ciência, afinal durante quatro anos eles conheciam tudo o que se mexia naquele brejo. Mas como assim? Ninguém descrevia uma espécie nova de ave no Brasil há mais de 100 anos. Descrever aves é coisa de naturalista do século XVIII.

Como numa brincadeira de esconde-esconde, semanas se passaram, montando redes e sendo devorados por mosquitos. A esquiva ave era tão pequena que passava pelas malhas da rede de neblina ou desviava da rede. Depois de um incessante esforço, Bianca e Marcão capturaram finalmente pela primeira vez uma ave franzina, ferrugínea, de asas pequenas e delicadas. Como todo pesquisador que tem nas mãos uma nova descoberta, Bianca e Marcão correram para o Museu Nacional do Rio de Janeiro para comparar o que eles tinham capturado com o que sabemos que existe. Por isso os Museus de biodiversidade são tão importantes. Durante 300 anos, muito mesmo antes de Darwin, os pesquisadores coletam animais e plantas e os depositam em Museus. Esses animais e plantas são o testemunho de todas espécies que existem no mundo e o que se conhece pela ciência. Se você acha que descobriu uma espécie nova, tem que comparar com tudo que foi coletado antes. Obviamente que existem pistas; se não, para validar cada descoberta levaria anos. Afinal só no Brasil são mais de 1900 espécies de aves.

O RG das aves é o formato do bico e o CPF sua laringe. Cada família de ave tem um formato peculiar de bico, o papagaio difere do jacú, que difere do sabiá, que difere da curicaca e assim vai. A laringe separa se a ave é um pássaro, o que os cientistas chamam de passeriforme (songbird em inglês) de um não-pássaro. Analisando a laringe das aves os ornitólogos conseguem diferenciar os gêneros. O bicudinho do brejo era certamente um Thamnophilidae, mesma família do matracão (Batara cinerea), os conhecidos seguidores de formigas. Depois de descrever detalhes da nova ave e com a ajuda do experiente ornitólogo, Dante Teixeira; Bianca e Marcão descreveram formalmente para a ciência o Stymphalornis acutirostris (hoje Formicivora acutirostris). Infelizmente, quase ninguém leu ou viu. Não saiu no Jornal Nacional, nem no Fantástico. A descrição de uma ave brasileira após 100 anos foi publicada numa revista completamente obscura (Instituto Iguaçu de Pesquisa e Proteção Ambiental) que nem mesmo os ornitólogos brasileiros conheciam. A revista só teve um único volume e faliu. Mas a descoberta de uma ave na Mata Atlântica, uma das florestas mais devastadas e fragmentadas do mundo, após 100 anos, aos poucos gerou uma certa excitação entre a sociedade de ornitólogos. Haveriam mais espécies escondidas?

O bicudinho do brejo é uma ave monogâmica de menos de 10 g, que se não fosse Bianca e Marcão poderia estar extinta antes de ser conhecido pelos brasileiros. Essa minúscula ave tem muitos comportamentos semelhantes ao do seu compatriota destruidor de brejos, o Homo sapiens. Para começar, o bicudinho vive apenas em pântanos e brejos entre dunas no litoral do Paraná e Santa Catarina, exatamente onde um tal de Homo sapiens constrói suas casas de veraneio para passar alguns dias do ano. O pequeno e frágil bicudinho tem vida longa e pode viver até 17 anos, bastante notável para uma ave tão pequena. Bem mais que um gato ou cachorro. Assim como os seres humanos, a fama de monogâmico é as vezes abalada pelos fatos. Bianca e Marcão descobriram que mesmo consideradas monogâmica, as fêmeas do bicudinho “pulam a cerca” e tem seus amantes. Até mesmo a sociedade tradicional do bicudinho tem divórcio e traição. O casal permanece defendendo um território pequeno por anos, a fêmea coloca apenas dois ovos. Bianca descobriu por análise de paternidade que alguns filhotes não eram do casal anilhado. O mais interessante, é que o amante nunca é o vizinho, mas sim um macho de um território distante.

Hoje o brejo onde os primeiros bicudinhos foram descobertos já não existe mais, foi aterrado e invadido por casas de veraneio. Existem hoje menos de 7 mil bicudinhos-do-brejo em menos de 6 mil hectares, uma área menor que muitos bairros da cidade de São Paulo. Como se o bicudinho já não tivesse problemas, além da sua questão fundiária, ele não ocorre em nenhum parque protegido e, para piorar, seu habitat está sendo invadido pela braquiária, um capim trazido da África. A braquiária acaba competindo com as plantas nativas do brejo e sufoca a vegetação. Mas contrariando Tom Jobim, que disse que enquanto o americano é treinado para ganhar e o brasileiro é treinado para perder, Bianca e Marcão não desistiram de salvar as poucas populações do bicudinho-do-brejo. Quando Bianca procurou especialistas em erradicar braquiária, todos foram unânimes em dizer para ela usar glifosato, um veneno poderoso, mas que ninguém sabe muito bem qual o impacto no ambiente. Teimosa, Bianca e Marcão contrataram pessoas para retirar manualmente milhares de touceiras de braquiária. E funcionou! Alguns pântanos repletos de branquiária foram limpos e a vegetação natural foi restaurada e o bicudinho-do-brejo recolonizou essas áreas.

Mas o destino do bicudinho-do-brejo também está nas mãos do Donald Trump. Isso mesmo, algo que certamente você nem imaginava. As mudanças climáticas, que negada por tanta gente, ocasionam um pequeno aumento da temperatura no planeta e o derretimento do gelo nos polos, acarreta leve subida no nível do mar. Como o bicudinho vive apenas nos brejos em frente ao mar, muitas áreas que ele ocorre já estão sendo alagadas (assim como as casas que destruíram o brejo). O bicudinho faz ninhos baixos na vegetação e qualquer alteração da maré e do nível do mar, acaba destruindo os ovos ou afogando os filhotes. Mas, graças a Bianca e Marcão, o bicudinho não foi para o brejo, por enquanto!

Desde a descoberta do bicudinho-do-brejo em 1995, os ornitólogos brasileiros já descobriram mais de uma dezena de novas aves no Brasil. Se uma espécie não é descrita formalmente, ela não existe para a ciência e nem judicialmente pode ser protegida. Nunca saberemos “para que serve” a espécie, sua função no ambiente, se fornece serviços ambientais ao homem, se podem produzir novos fármacos, ou se apenas “servem” para ser admiradas. Muitas dessas descobertas são por acaso e todas são fruto da paixão e perseverança desses cientistas pelo que mais gostam de fazer.

Encontrei novamente Bianca Reinert com aparência frágil e voz suave em 2017. Uma eterna apaixonada por aves, Bianca decidiu morar no mato, vendo aves em lugares brejosos. – “Ninguém gosta de molhar o pé, por isso o bicudinho ficou tanto tempo escondido da ciência”, diz Bianca. Sem fama ou dinheiro, e sobrevivendo de artesanato, essa ornitóloga não desiste frente aos mais severos desafios. Bianca descobriu em 2001 um câncer de mama e veio a falecer em 10 de setembro de 2018. Depois da descoberta do bicudinho, Bianca ainda descobriu mais duas espécies de aves, inclusive um bicudinho-do-brejo-paulista ao lado da cidade de São Paulo. Também vivendo num brejo cheio de mosquito que ninguém visita. Bianca com um sorriso me fala: – “As pessoas reclamam de tudo, do tempo, da política, eu não. Eu estou feliz só por acordar. Quero aproveitar o dia e ver passarinhos”.

Nosso país está cheio de heróis anônimos como Bianca, não sai na TV, não tem fama, mas que fazem a diferença para a conservação da nossa diversidade. Pois é, acho que todos devemos em vez de reclamar, ir ali, ver passarinhos…

*Mauro Galetti é professor do Departamento de Ecologia, da Universidade Estadual Paulista (UNESP) de Rio Claro, SP.

Fonte: O Eco