Consumismo e obsolescência psicológica
*Roberto Naime
Fabián Echegaray é Ph.D em Ciência Política pela Universidade de Connecticut (EUA) e diretor-geral da Market Analysis, instituto de pesquisas especializado em sustentabilidade e responsabilidade social. Ao lado de Tomas Ariztia (UDP, do Chile), são os responsáveis pela discussão sobre politização e ambientalização do consumo.
Fabian exerce instigante reflexão. Apoiado em manifestações assertivas e interrogatórias introduz pedagógica interpretação.
Você se lembra de quantos celulares já teve? Por que motivos trocou sua última geladeira? Por quanto tempo espera usar seu novo computador? E por quanto tempo usou o anterior?
Quanto se fala em produtos eletroeletrônicos as questões relativas ao tempo de vida útil dificilmente são associadas à questão da sustentabilidade. Não é só falha dos consumidores. A própria regulação estatal, demarcada pela Lei Nacional de Resíduos Sólidos omite falar no problema da obsolescência dos produtos.
Na mídia de negócios de abrangência nacional e até especializada o tema é virtualmente ignorado. Nenhuma empresa do setor reconhece sua responsabilidade diante do acelerado encurtamento da funcionalidade dos aparelhos ou do estímulo publicitário aos consumidores para concretizarem uma troca antecipada.
Se por um lado, as consequências adversas da obsolescência programada na forma de lixões lotados de aparelhos descartados e ansiedade generalizada entre os compradores costumam receber a atenção do governo e da grande mídia, por outro lado, esses efeitos são raramente conectados com as políticas corporativas de vida útil reduzida para os bens eletroeletrônicos.
Como entender essa omissão? Pesquisa do instituto Market Analysis em parceria com o Instituto de Defesa do Consumidor revela que ao mesmo tempo que existe um disseminado senso comum entre os brasileiros de que os produtos eletroeletrônicos apresentam um tempo de vida útil cada vez menor e que a indústria estimula ativamente a substituição antecipada dos aparelhos, isso não gera insatisfação entre os consumidores, sugerindo que a troca de aparelhos é dada como algo natural.
Nas concepções da maioria da população, a substituição parece regida pelos imperativos da moda e da expansão de novas funções. Ou seja, por uma obsolescência quase induzida, não existem contestações.
Apesar dos efeitos negativos para as finanças, para o meio ambiente e a estabilidade emocional de quem se depara com a obsolescência de desempenho ou simbólica dos seus aparelhos raras vezes essa troca é problematizada.
A regra assimilada é que a atualização funcional e o “upgrade” imaginário do status de quem possui tais aparelhos são os benefícios mais palpáveis para o consumidor do que os custos de ser indiretamente forçado a descartar aparelhos ainda em funcionamento ou que poderiam ser consertados.
Da amostra de 806 brasileiros residentes nas 9 principais capitais do país que responderam a pesquisa, 93% concorda com que “hoje em dia os aparelhos eletrônicos duram bem menos do que no passado”, 90% que “algumas empresas, quando lançam um produto novo não colocam todas as inovações que poderiam nele, já prevendo o lançamento de uma nova versão”, e 84% que “alguns eletrônicos são projetados para que durem menos tempo do que seria possível para incentivar que um novo produto seja comprado mais cedo”.
Contudo, é um grupo mais reduzido de 67% que admite que “sinto que termino substituindo os aparelhos eletrônicos com maior frequência do que eu gostaria.” A diferença entre percepção da existência da obsolescência planejada e a interpretação da mesma como algo imposto é um primeiro indicador objetivo do grau no qual tal obsolescência vem sendo internalizada como natural pelos consumidores.
Um segundo indicador é dado pelo intervalo entre a vida útil real e a percepção de vida útil ideal atribuída a estes aparelhos. Que em geral, não ultrapassam os 3 anos ou menos em média, para bens de uso corriqueiro como celular, computador, impressora ou TV e sua relação com essa sensação de substituição forçada desde o mercado.
Um terceiro indicador é obtido quando se avalia que o tempo esperado de duração dos aparelhos entre consumidores que se percebem forçados a trocar e aqueles que não se percebem dessa forma é praticamente o mesmo, apresentando uma diferença inferior a 2 meses.
Em síntese: a obsolescência não é somente aceita pelos consumidores, como também é abertamente bem-vinda. A ampla aceitação da obsolescência programada pelos consumidores é suportada também pela elevada predisposição à substituição dos aparelhos, a qual muitas vezes não está vinculada a razões funcionais.
Por um lado, embora o consumidor entenda que os aparelhos devessem durar mais, sua expectativa de trocar os atuais aparelhos é elevadíssima. Cerca de 4 em cada 10 consumidores afirma que é provável que substituam o celular ao longo de 1 ano. Para outros aparelhos, as chances são de que 2 em cada 10 façam a troca no mesmo período.
Por outro lado, ao explorar os motivos de troca do último aparelho entre a população pesquisada, a opção de maior repercussão é “porque o novo era mais atual, moderno, melhor ou com mais funções”. Quase metade deles (47%) admite razões de modernização tecnológica e simbólica antes de justificar a troca por defeitos de funcionamento ou quebra total.
No caso das impressoras e dos computadores esse percentual supera com folga os 50%. Por que o novo era mais atual, moderno, melhor ou com mais funções. Por que o antigo não funcionava mais. Por que o antigo até funcionava, mas estava com alguns defeitos.
O que esses dados nos sugerem? Que existe uma assimilação conformada do consumidor frente as estratégias da indústria e da propaganda, já que ele percebe “em abstrato” que os aparelhos deveriam durar mais, mas está satisfeito com a durabilidade e desempenho de seu aparelho.
Em definitiva, os consumidores acabam conciliando suas aspirações por um aparelho menos descartável com sua realidade de troca do mesmo, ajustando suas expectativas de durabilidade e expressando uma satisfação com o aparelho que a troca parece desmentir. É a naturalização da obsolescência, não com base aos argumentos convencionais de geração de riqueza e empregos ou avanços tecnológicos, mas sim com base em uma projeção simbólica modernizada da própria identidade nos aparelhos utilizados.
Assim, para uma grande parte dos brasileiros, a troca antecipada de aparelhos eletroeletrônicos não depende do bom ou mau funcionamento dos mesmos, mas sim do projeto individual de construção e atualização contínua da sua identidade.
Para alguns pode ser o trunfo da “destruição criativa” atribuída ao capitalismo, e para outros, a evidência da perversa construção artificial de necessidades por parte da indústria e seu braço publicitário.
Trate-se de obsolescência tecnicamente programada ou psicologicamente motivada, as consequências sociais e ambientais dela não podem ser ignoradas por aqueles agentes genuinamente comprometidos com um modelo de sustentabilidade.
Uma sociedade com clientes vorazmente abraçando o descarte de produtos quando ainda estão funcionando, fabricantes que programam vida útil encurtada nos aparelhos que produzem, agências de publicidade faturando com o pavor à obsolescência psicológica dos consumidores e governos omissos aos efeitos de semelhantes práticas só podem nos colocar na contramão da sustentabilidade.
A autopoiese, na acepção livre da palavra, sistêmica dominante necessita ser alterada. Pois hoje, o consumismo garante a manutenção dos “círculos virtuosos” da sociedade. Aumento de consumo gera maiores tributos, maior capacidade de intervenção estatal, maior lucratividade organizacional e manutenção das taxas de geração de ocupação e renda. O consumismo precisa ser substituído pela ideia de satisfazer as necessidades dentro de ciclos.
Não se pode consentir com o fenômeno da obsolescência programada. Nem psicológica e nem funcional.
*Roberto Naime é Doutor em Geologia Ambiental. Integrante do corpo Docente do Mestrado e Doutorado em Qualidade Ambiental da Universidade Feevale.
Fonte: EcoDebate