Somos todos planetários, porém divididos
*José Monserrat Filho
Nem sempre fomos tão planetários e tão divididos como hoje. Tempo houve, há milênios, quando não tínhamos a mais ínfima noção do planeta que habitávamos. Nascemos na África Oriental entre um milhão e 300 mil anos Antes de Cristo. Vivíamos em bandos, unidos e solidários, para sobreviver o mais possível. Caçávamos e coletávamos. Protegíamos nossa prole e disputávamos comida com outros bandos similares a nós, em meio a ataques de animais selvagens, intempéries inclementes e desastres naturais, contra os quais não tínhamos a menor defesa.
O mundo de então – a natureza pura – era, ao mesmo tempo, nossa vida e nossa morte, nossa casa e nosso forno, nossa comida e nossa fome, nosso prazer e nossa dor, nossa escola para o bem e para o mal, nosso atraso e nosso presente-futuro, nosso desaparecimento ou perpetuação.
Fomos do Homo erectus ao Homo sapiens e ao Homo sapiens sapiens – "o homem que sabe o que sabe", já pensa e tem um cérebro bem mais desenvolvido que o de seus ancestrais.(2) Foi o que nos permitiu chegar às capacidades e aos talentos destrutivos capazes de fazer da Terra o que ela é hoje, a caminho de um colapso sem precedentes, ou mudá-la, salvando-a e criando uma situação mais humana, lúcida, benéfica e justa para toda sua crescente e diversificada população.
Hoje, a natureza, degradada e envenenada como nunca antes, continua sendo para nós o que sempre foi: a escolha entre rumos que se excluem. Ainda não percebemos bem que somos parte do todo e o todo é parte de nós. Estamos imersos no mundo como o mundo está imerso em nós. Nosso destino sempre foi sermos planetários. Temos conterrâneos por todo o globo, mesmo quando nós não os vemos, nem eles nos veem. Essa percepção, porém, ainda não se completou. Sendo planetários, podemos ser universais, adentrando o espaço sideral, no rumo das estrelas.
"Somos regentes do planeta, administradores da vida e predadores do que administramos", denuncia em seu livro A conexão planetária o pensador Pierre Lévy, nascido na Tunísia em 1956 e formado na França, onde é professor e pesquisador.(3) Mas, consola-nos ele, "a unidade da humanidade está se fazendo agora. Após tantos esforços, é enfim chegada a unificação da humanidade, sob uma forma que não esperávamos: não é um império, não é uma religião conquistadora, uma ideologia, uma raça pretensamente superior, uma ditadura qualquer; são imagens, canções, o comércio, o dinheiro, a ciência, a técnica, as viagens, as miscigenações, a Internet, um processo coletivo e multiforme que brota de todo lugar". Lévy chama esse processo de "expansão da consciência".(4) Mas consciência de que?
É claro que a ciência e a técnica – o conhecimento, a tomada de consciência, a descoberta, a invenção – precedem o comércio e o dinheiro, ainda que esses poderosos recursos tenham sido muito usados no passado e continuem cada vez mais usados, precisamente em favor do comércio e do dinheiro, no mundo atrabiliário de hoje. O fato, contudo, é que a curiosidade e a ânsia de saber dos seres humanos em geral surgiram milhões de anos antes do comerciante (mercador) e do banqueiro, apesar das não poucas alegações em contrário.
Ser planetário não é ser consumidor do mundo através das novas tecnologias e de seu endeusamento. É estar, sim, atualizado com as novas tecnologias sem escravizar-se a elas e iludir-se com a ideia de que somente elas podem salvar o planeta. É ter fome de conhecimento, sem a menor dúvida, e dar plena atenção à autonomia e à criatividade dos indivíduos, mas sem egoísmo, sem egocentrismo. É imprescindível que eles estejam ligados à participação e às necessidades de milhões de pessoas e à consciência de pertencer à humanidade. A essência da globalização e da planetarização humana não está apenas no crescimento das redes de transportes e comunicação, na proximidade cada vez maior e mais fácil entre as pessoas, na eliminação das fronteiras e das barreiras que as separam e as tornam adversárias, algozes e inimigas.
É verdade: quanto mais você se conecta e busca novas conexões, mais vasto pode ser seu campo de interação, mais rico seu aprendizado e maior sua experiência. Resta saber o que você vai fazer com todo esse ganho diante do mundo e das outras pessoas. Hitler soube muito bem se conectar com o lúmpen, o povo, as elites e a aristocracia militar alemã. Deu no que deu: a mais destruidora guerra de todos os tempos, com mais de 50 milhões de mortos.
Conexões são formas, veículos, recipientes, invólucros, estruturas, vasos, Internet, nuvens, redes sociais, celulares, tablets, computadores. Em geral, cada novo sistema é mais rápido e moderno que o anterior. Obviamente, elas resultam de importantes avanços científicos e tecnológicos. Mas por si mesmas não resolvem nada. São produtos de um mecanismo chamado mercado, que simplesmente não pode passar sem vender e vender e vender – é a maquiavélica máquina do consumo, o moto perpétuo que dizem não existir… "A existência dessa tecnologia é condição necessária, mas não suficiente para a possível emergência de uma sociedade-mundo", afirmam Edgar Morin, Emilio-Roger Ciurana e Raul Motta, em Educar na Era Planetária.(5)
Daí que as conexões são boas ou más, úteis ou inúteis, benéficas ou maléficas, construtivas ou destrutivas, dependendo do conteúdo que divulguem e dos interesses a que servem. Todos nós vivemos acorrentados ao mercado. E temos de suportá-lo cada vez mais impositivo e devorador. Mas ainda podemos nos livrar do puro e devastador consumismo, escolhendo e usando o celular ou o computador em função do que precisamos fazer com a ajuda deles e não do que eles pretendem fazer de nós – idiotas super conectados e perdidos no mundo, mais fáceis de lidar.
Há quem diga que este é um novo homem, aberto a mil possibilidades e oportunidades. Ocorre que ele pode ser aberto e ao mesmo tempo vazio, oco ou mero repetidor do que está em voga, um admirável papagaio. Mas basta ele se conectar com a seiva, o núcleo, o conteúdo, a trajetória histórica, o mérito e os valores de cada possibilidade e oportunidade, para, aí sim, ser um novo ser humano, com pensamentos, competências, ideias e convicções próprias, além de comprometido com a humanidade, que sempre garantiu e seguirá garantindo a vida de todos nós.
O Papa Francisco vai além ao afirmar: "A verdadeira sabedoria, fruto da reflexão, do diálogo e do encontro generoso entre as pessoas, não se adquire com mera acumulação de dados, que, numa espécie de poluição mental, acabam por saturar e confundir." (6) Isso tende a substituir relações reais por relações virtuais, artificiais, sem laços efetivos. É a rota da indigência intelectual.
No entanto, não é bem isso o que mais divide os planetários. É a alarmante desigualdade econômica, social, política e cultural. Ela só faz crescer em todo o mundo, ampliando a já gigantesca distância entre ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres, em escala global. Joseph Stiglitz, Prêmio Nobel de Economia de 2001, fala do "grande abismo que separa os muito ricos – também conhecidos como 1% – dos demais".
Ele conta que num "jantar oferecido por um brilhante e preocupado integrante do 1%", o anfitrião, "consciente do grande abismo", "reuniu os principais bilionários, acadêmicos e outras pessoas preocupadas com a desigualdade". Stiglitz ouviu "um bilionário – que começou a vida herdando uma fortuna – conversando com outro sobre os americanos preguiçosos que procuravam viver às custas dos outros". "Em seguida, sem sobressaltos, eles passaram a tratar das isenções fiscais, aparentemente sem se dar conta da ironia", explícita naquela conversa. Não por acaso, durante o jantar, ante "o risco" de que "a desigualdade cresça demais", "Maria Antonieta e a guilhotina foram citadas várias vezes". O tom da festa, goza Stiglitz, foi "lembre-se da guilhotina".
E o pior: "estamos entrando num mundo mais dividido, não só entre ricos e pobres, mas também entre países que nada fazem para combater a desigualdade e os que lutam contra ela". Nas sociedades divididas, frisa o economista, "os ricos irão se isolar em comunidades fechadas, quase que totalmente separados dos pobres, cujas vidas serão quase incompreensíveis para eles – assim como a vida dos ricos será incompreensível para os pobres". (7)
E isso em plena Era Planetária. Que planeta, afinal, estamos levando para o espaço?!
*José Monserrat Filho é vice-presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial (SBDA), diretor honorário do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro pleno da Academia Internacional de Astronáutica (IAA) e ex-chefe da Assessoria Internacional do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e da Agência Espacial Brasileira (AEB).
Fonte: EcoDebate