Opinião

Florestas: quando 20 são 40

*Fernando Reinach

A lei é clara. Se você tem uma fazenda na região amazônica, 20% da área pode ser desmatada e 80% tem de ser preservada como floresta. A grande vantagem dessa lei é a simplicidade. De posse dos limites físicos de cada propriedade e de imagens de satélite, em teoria seria fácil monitorar a fração desmatada e coibir os infratores. Se a lei fosse cumprida, a maioria das pessoas imagina que 80% das florestas e a totalidade da biodiversidade amazônica estariam preservadas.

Acontece que isso não é verdade. Faz muitos anos que os cientistas descobriram que as áreas desmatadas influenciam a biodiversidade das florestas adjacentes. Mamíferos e aves são afetados pelos 20% desmatados, a borda da área desmatada perde biodiversidade, a remoção de árvores grandes afeta a flora e a fauna, e o tamanho absoluto da área preservada também afeta a biodiversidade. Esses resultados mostram que desmatar 20% causa impacto à biodiversidade dos 80% restantes.

Mas o grau desse impacto nunca havia sido medido com precisão, e muitas pessoas achavam que ele deveria ser pequeno. Agora um grupo de cientistas conseguiu medir o efeito global da soma de todos esses fatores – e eles são grandes.

Foram estudadas duas grandes fronteiras de desmatamento no Pará, cada uma com mais de 10 mil quilômetros quadrados, Paragominas e Santarém. Nessas regiões foram escolhidas 36 bacias hidrográficas, cada uma com um grau de desflorestamento. A porcentagem da floresta removida em cada uma dessas bacias variava de 0% a 94%.

No interior dessas 36 bacias foram selecionadas 371 áreas onde a biodiversidade foi medida diretamente. Dessas, 175 eram áreas de floresta primária. As outras eram de florestas secundárias ou áreas desmatadas usadas para pastagem. É importante entender que, das 175 áreas de florestas, algumas estavam em bacias hidrográficas quase que totalmente desmatadas e outras eram florestas em bacias totalmente preservadas. Em cada uma dessas áreas os cientistas mediram a biodiversidade presente, investigando a presença e a frequência de 1.538 espécies de plantas, 460 de pássaros e 156 de besouros. Um trabalho braçal enorme feito entre 2010 e 2011 por uma grande equipe de cientistas brasileiros e seus colaboradores de diversos países. Agora os dados acabaram de ser analisados e os resultados foram publicados.

Com esses dados foi possível estimar a biodiversidade conservada em florestas aparentemente bem preservadas, em regiões com diferentes graus de desflorestamento. Esses dados foram colocados em um gráfico em que no eixo horizontal estava o grau de desflorestamento da bacia hidrográfica onde estava localizada a floresta estudada e, no vertical, a perda absoluta da biodiversidade observada na bacia hidrográfica. Se o desmatamento não influenciasse a biodiversidade presente nas florestas remanescentes, a perda de diversidade deveria ser zero e independente da cobertura florestal. Mas o que os cientistas observaram é diferente. Basta remover 10% da floresta de uma bacia hidrográfica para que entre 20% e 40% da biodiversidade desapareça. E essa perda de biodiversidade aumenta gradativamente à medida que a região em volta da floresta remanescente é desmatada.

Esse resultado demonstra que uma floresta intacta, localizada em uma região onde o desmatamento é de 20% da área total, perde entre 39% e 54% de seu valor como área de conservação da biodiversidade. Em outras palavras, se queremos preservar 80% da biodiversidade da Amazônia, a fração da área que poderia ser desmatada é significativamente menor que os 20% permitidos hoje pelo Código Florestal.

Esse resultado é triste, mas bem-vindo. Por um lado, mostra quão frágil é o ecossistema amazônico. Por outro, é um bom argumento contra quem critica o Código Florestal por achar que os 80% da floresta que a lei nos obriga preservar é um exagero. Na Amazônia, cortar 20% da floresta significa destruir mais de 40% do que queremos preservar.


*Fernando Reinach é biólogo

Fonte: Estadão