Opinião

Da ’lei da tilápia’ ao projeto de Marcelo Crivella para aquicultura: a inconsequência sem fim

*Nurit Bensusan

Inconsequência pouca é bobagem… Há pouco mais de um mês, a Assembléia Legislativa do Amazonas aprovou e o governador José Melo (Pros) sancionou uma lei estadual que, se implementada, ameaça a biodiversidade aquática da Amazônia e, consequentemente, toda a biodiversidade na maior floresta tropical do planeta. Trata-se da lei 79/2016, que libera, entre outros absurdos, a introdução de espécies não nativas nos rios e igarapés do Amazonas. Depois de muitos protestos, a Assembleia Legislativa decidiu rediscutir alguns dos dispositivos da lei, apelidada de "lei da tilápia". É o que acontece por ora, sem que ainda seja possível prever os resultados.

Como aparentemente, no momento, acompanhamos um campeonato de inconsequência, cujo prêmio maior parece ser a destruição de nossa biodiversidade, caminha no Senado o Projeto de Lei (PLS) 620/2015, que faz sombra à "lei da tilápia". Primeiro, porque não se restringe a Amazônia, abarcando o país todo, e, segundo, porque cria um ambiente sem nenhuma fiscalização ou controle para a instalação de parques e áreas aquícolas que ocupem até 0,5% da superfície de lagos de hidrelétricas, açudes e barragens de domínio da União. A proposta desconstrói, um por um, todos os dispositivos que visam exercer algum controle sobre as atividades aquícolas. O PLS é de autoria do senador licenciado e candidato à Prefeitura do Rio de Janeiro Marcelo Crivella (PRB), está na pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado e pode ser votado na manhã desta quarta (13/7).

O meio aquático é completamente interconectado, por meio de rios e outros cursos d’água e pelo ciclo hidrológico. O resultado é que os impactos no meio aquático difundem-se pelo ambiente de maneira mais aguda e mais rápida do que o que acontece no meio terrestre. É fundamental considerar tal característica para a concessão do prêmio máximo de inconsequência. Isso quer dizer que os impactos não são reversíveis, uma vez que espécies exóticas sejam introduzidas, por exemplo, não há como retirá-las do ambiente.

Vale lembrar que 0,5% desses corpos d’água a que o PLS se refere podem significar uma área muito extensa. Cabe ressaltar ainda que o projeto de lei não se resume a esses corpos d’água, pois trata também de parques e áreas aquícolas que ocupem até 0,5% da superfície das águas da "Zona Econômica Ecológica (ZEE)" por unidade da federação. Imaginamos que o projeto de lei se refira à "Zona Econômica Exclusiva", ou seja, o mar que se estende por 200 milhas náuticas (370 km) da costa.

Desconstrução

O PLS inicia sua desconstrução de todo e qualquer mecanismo de controle em seu artigo 2º, quando acrescenta um inciso relativo aos parques e áreas aquícolas à Lei 9.433/1997, da Política Nacional de Recursos Hídricos. A proposta visa permitir que parques e áreas aquícolas sejam implantados sem que haja a necessidade de outorga do Poder Público. Como a própria Lei 9.433/1997 aponta que o regime de outorga de direitos de uso de recursos hídricos visa assegurar o controle quantitativo e qualitativo dos usos da água, é de se supor que essa isenção poderá colocar em xeque tal controle.

Em um esforço supremo de evitar qualquer "burocracia", que se traduza em controle e fiscalização, o PLS, em seu artigo 3º, dispensa do registro, das prévias inspeções navais e das vistorias presentes na Lei 9.537/1997 as plataformas destinadas aos parques e áreas aquícolas. A Lei 9.537/1997 dispõe sobre a segurança do tráfego aquaviário e nela a plataforma é definida como "instalação ou estrutura, fixa ou flutuante, destinada às atividades direta ou indiretamente relacionadas com a pesquisa, exploração e explotação dos recursos oriundos do leito das águas interiores e seu subsolo ou do mar, inclusive da plataforma continental e seu subsolo." Não é lógico acreditar que a dispensa não comprometa a segurança de tais elementos. Esse dispositivo do PLS contribui para a geração de uma insegurança que pode ter consequências trágicas, tanto para o meio ambiente, quanto para os trabalhadores envolvidos nos empreendimentos dos parques e das áreas aquícolas.

Persistindo na desconstrução de qualquer instrumento de controle, o artigo 4º do PLS agrega à Lei 9.639/1998 um dispositivo para possibilitar que tais áreas de domínio da União sejam cedidas gratuitamente e sem licitação. A Lei 9.639/1998 trata da regularização, administração, aforamento e alienação de bens imóveis de domínio da União. O resultado desse artigo é que 0,5% da superfície dos lagos de hidrelétricas, açudes, barragens e das águas da ZEE seriam cedidos de graça e sem licitação aos interessados em criar parques e áreas aquícolas.

Ameaça à biodiversidade

Piores, porém, são as modificações que o PLS propõe, em seus artigos 6º e 7º, na Lei 11.959/2009, da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável da Aquicultura e da Pesca. Uma é o acréscimo de um parágrafo com o intuito de permitir a atividade pesqueira sem licença, permissão, concessão, autorização ou registro expedido pelo órgão competente nos parques e áreas aquícolas objetos do PLS. Remete, ainda, para posterior regulamentação os aspectos técnicos relativos à instalação, ao seu monitoramento, à segurança náutica e até mesmo às espécies aquicultáveis. Esse é um dos maiores riscos desse PLS, pois está fartamente documentado o papel da aquicultura na introdução de espécies não nativas. Seus graves e irreversíveis impactos ambientais, porém, têm sido desprezados pelo poder público, que tem insistido em projetos de aquicultura sem monitoramento adequado. O PLS pode comprometer toda a diversidade aquática brasileira, acabando com a excelente oportunidade de negócio da piscicultura de espécies nativas.

O PLS ameaça não apenas a biodiversidade aquática brasileira, mas também cria muita insegurança, tanto para trabalhadores como para futuros consumidores dos produtos derivados de tais empreendimentos. Um forte candidato, sem dúvida, ao prêmio-mor do campeonato de inconsequência…

*Nurit Bensusan é especialista em Biodiversidade e coordenadora adjunta de Política e Direito do ISA

Fonte: Instituto Socioambiental