Opinião

Todos os dias morre Juma

*Mirella Lauria D’Elia

Talvez a comoção que sucedeu o trágico fim da onça-pintada Juma desperte a sociedade para os conflitos socioambientais brasileiros. Trabalhar as dimensões humanas da conservação e manejo de animais silvestres é mais do que necessário, é urgente.

Todo dia morre uma onça-pintada – pior, várias – em razão da ignorância de pessoas e comunidades que vivem próximas a esses grandes predadores sobre sua biologia, comportamento; sobre como é possível reduzir os conflitos diários decorrentes dessa convivência. Infelizmente, não adianta apontarmos nossos dedos, sentados em nossos sofás urbanos. É fácil julgar se você não vive a realidade dessas pessoas. Se quisermos uma saída, os maiores aliados serão a educação e o diálogo.

Todo dia morre uma onça-pintada em decorrência de pessoas que ainda insistem em abater esses indivíduos por prazer, por status, para aprisionar sua beleza singular em um tapete sob o qual jaz o escrúpulo humano. E não me venham com a história de que faz tempo que esse tipo de esse tipo de criatura não habita mais a Terra.

Todo dia morre uma onça-pintada atropelada por excesso de velocidade, por falta de reconhecimento de governos da necessidade de passagens de fauna nas estradas para a segurança de pessoas e animais;

Todo dia morre uma onça-pintada para que seu filhote seja feito de mascote, vendido numa fronteira do Brasil, principalmente se for melânico, criado por comunidades ribeirinhas até que se torne um problema para a segurança pública e para os órgãos ambientais. Há dezenas de grandes felinos em condições inadequadas de cativeiro precisando de destinação, muitas vezes insalubres, apesar dos esforços daqueles que se dedicam a melhorar suas condições de vida. Verba e estrutura nunca chegam.

Todo dia morre uma onça-pintada quando esta é subtraída da natureza e fica incapacitada de exercer seu papel biológico. Salvo os programas de cativeiro onde esses indivíduos são incluídos em planos de manejo sérios, que visam a conservação da espécie.

Para que fique claro, cabe a sociedade demandar esclarecimentos e cabe ao poder público apurar o acidente. Em qualquer esfera e instituição, seja ela pública ou privada, condutas abusivas precisam ser combatidas, revisadas e corrigidas. Nem sempre exibição de animais em público será sinônimo de conservação. Mas acredito que um animal acorrentado e exibido num evento desta magnitude foi um despropósito para a proteção da onça-pintada no Brasil. Sinto vergonha de que o mundo tenha presenciado tamanha infelicidade.

Precisamos nos educar e nos enxergar como sentinelas de nossas próprias riquezas e não como seus algozes. E me refiro a cada um de nós.

Não é a primeira vez que nossa fauna tem sua imagem utilizada como símbolo de eventos desportivos. Fuleco, o tatu-bola, foi mascote da Copa do mundo FIFA 2014. Agora Ginga, aqui representado por Juma, enfrentou um trágico fim ao "receber" a tocha olímpica das Olimpíadas Rio 2016. Diariamente usamos, abusamos, subtraímos e depredamos nossa biodiversidade. E me assombra que eventos de visibilidade internacional como esse, que utilizam a nossa fauna como símbolo, que vendem sua imagem embutida em pelúcias, chinelos, camisetas, bonés, chaveiros e toda sorte de souvenires, repassem uma fração muito pequena equivalente das suas vendas para auxiliar projetos de conservação de espécies ameaçadas de extinção.

O tiro desferido contra Juma é a metáfora perfeita do dano que praticamos contra nossa biodiversidade. E a mudança cabe a todos nós. Espero que hoje encontre a liberdade merecida no lugar do qual nunca deveria ter saído, Juma!

E para aqueles que acreditam que o ocorrido foi uma exceção, compartilho imagens de absurdos cometidos contra onças-pintadas no Brasil. Nós que amamos e trabalhamos com esses magníficos animais precisamos engoli-los no nosso dia a dia.

Apesar do desabafo, espero que todos os projetos sérios de conservação de onça-pintada de cativeiro e vida livre sejam amplamente divulgados e apoiados. E que suas equipes sejam reconhecidas. Convido cada um dos envolvidos a formar uma corrente positiva para divulgar seus trabalhos pela América Latina, que conte como a onça-pintada transforma a vida de quem se dedica a salvá-la. Por mais respeito pela onça-pintada!

*Mirella Lauria D’Elia é Médica veterinária, pesquisadora na área de epidemiologia e trabalha com medicina da conservação de carnívoros silvestres brasileiros.

Fonte: O Eco