Opinião

A medicina e a escassez de água

*Jerson Kelman

Antibióticos são úteis no combate às infecções. Porém, não devem continuar a ser tomados depois de vencida a doença. Dependendo do estado de deficiência imunológica do paciente, o médico decidirá por quanto tempo é apropriado continuar utilizando o medicamento para que se tenha certeza que o "exército invasor" foi efetivamente debelado. Trata-se de uma decisão sob incerteza porque não existe uma regra imutável a ser tomada em todos os casos. Ou seja, é preciso considerar as condições únicas de cada paciente. Quando o paciente piora ou apresenta efeitos colaterais, não raro há quem culpe o médico com base na suposição de que se a decisão tivesse sido diferente, tudo daria certo. Mas, é impossível saber o que teria acontecido se a decisão fosse diferente.

Preços são sinais econômicos essenciais para ajustar o equilíbrio entre oferta e demanda de bens e serviços. Por isso a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) propôs, em plena crise hídrica, o estabelecimento de desconto (bônus) na conta de água para os que diminuíssem o consumo e sobrepreço (ônus) para os que aumentassem.

Assim como os antibióticos só devem ser ingeridos continuamente em casos excepcionais, também no caso dos sistemas de abastecimento de água os regimes diferenciados de preços só devem ser mantidos em situações excepcionais. É sempre preferível reforçar as "defesas internas" de cada organismo ou sistema.

Recente editorial do GLOBO ("Alívio momentâneo não tira escassez de água da agenda") coloca em dúvida a sensatez da suspensão, por proposta da Sabesp, do programa de bônus e ônus. O editorial afirma corretamente que o estoque de água no sistema Cantareira é atualmente superior a 65%. Mas acrescenta que "especialistas dizem que é preciso manter a vigilância. Recomendam controle de vazão, reflorestamento… e estímulo ao consumo racional".

Pois é exatamente isso que se está fazendo. Por exemplo, a retirada de água do sistema Cantareira é atualmente, depois da crise, 30% menor do que era antes da crise, graças ao que parece ser uma mudança permanente de comportamento da população, que passou a se preocupar em usar a água parcimoniosamente. Sem esse comportamento maduro e responsável, o grau de anormalidade causado pela pior seca da história de São Paulo teria sido muito mais intenso do que foi.

Também o reflorestamento, sugerido pelos especialistas, tem sido intensificado. Não para "criar água" e aumentar a vazão média dos rios, como muitos imaginam. Mas sim para melhor recarregar o lençol freático, impedindo que as nascentes sequem durante longas estiagens.

A decisão sobre o fim do programa de bônus e ônus não foi tomada porque a Sabesp foi acometida de um insensato otimismo no sentido de que nunca mais uma seca como a que ocorreu em 2014-2015 se repetirá. Ao contrário, é preciso contar com a possibilidade de a natureza "nos presentear" com condições iguais ou piores.

Três grandes obras estruturantes, duas em andamento e uma ainda em processo de licenciamento ambiental, são imprescindíveis para assegurar a segurança hídrica da RMSP ("defesa interna"). Trabalha-se para entregar essas obras o mais cedo possível, assim como para acelerar a implantação dos sistemas de coleta e tratamento de esgoto. Para isso são necessários recursos financeiros que, no caso da Sabesp, provêm exclusivamente das contas de água pagas pelos consumidores. Isto é, não há subsídios lastreados em impostos pagos pelos contribuintes. Manter indefinidamente o bônus e o ônus, apenas em respeito ao princípio de precaução, seria prejudicial à implantação da infraestrutura necessária para fortalecimento da "defesa interna" do sistema produtor de água potável. Engenheiros e médicos sensatos devem usar com precaução o princípio da precaução.

*Jerson Kelman é professor da Coppe-UFRJ e presidente da Sabesp

Fonte: O Globo