Opinião

Kaziranga: a fortaleza dos rinocerontes

*Fabio Olmos

Eu avalio a efetividade das áreas protegidas de uma maneira simples. O primeiro e definitivo critério é aquilo que os bichos e plantas que nós gostamos de matar – de onças a mognos – me dizem. Se suas populações estão crescendo ou estáveis, com uma estrutura demográfica que mostra recrutamento e baixa probabilidade de extinção, então a coisa está funcionando.

Meu segundo critério é o que está acontecendo com a vegetação na escala de paisagem. Se habitats naturais estão se mantendo ou em expansão, a coisa está funcionando. Pontos extras se isso estiver acontecendo na zona de amortecimento e formando conexões entre a área-alvo e outras áreas naturais.

Por fim, considero se aquela área protegida está cumprindo sua tarefa de servir à população como indutor da economia, como indutor do processo civilizatório (chame isso de educação) e como local onde cidadãos podem usufruir de nossa herança natural comum. Coisas que, se você pensar bem, pouco valem sem os dois primeiros critérios.

Os "parques-fortaleza" têm tido bastante publicidade negativa aqui no Brasil, onde há uma preferência, de um lado, por trancar unidades de conservação ao público enquanto se esperam dias melhores ou, então, liberar geral transformando-as em reservas extrativistas, reservas de desenvolvimento sustentável, terras comunais e outras ideias socioambientais que, na maioria, falham miseravelmente nos critérios 1 e 2.

Olhar experiências em outros países que estão em patamar econômico similar ao do Brasil pode gerar reflexões e aqui quero compartilhar minha visita a um "parque-fortaleza" no "I" dos BRICS, a Índia.

Os ancestrais dos rinocerontes surgiram na América do Norte há cerca de 50 milhões de anos. Graças a conexões entre o que hoje é o Alasca e a Sibéria, colonizaram a Eurásia não muito depois disso, e de lá a África. A radiação evolutiva dos chamados Rhinocerotoidea produziu desde os maiores mamíferos terrestres, os Paraceratherium da Mongólia (com 6 m na altura dos ombros), até espécies que ocupavam o mesmo nicho ecológico dos hipopótamos.

Os rinocerontes atuais (família Rhinocerotidae) surgiram na Eurásia a cerca de 45 milhões de anos. Um membro deste grupo foi o rinoceronte-lanudo Coelodonta antiquitatis, que chegou a ocorrer da Espanha à Sibéria e foi extinto há apenas 8 mil anos.

Outro membro do grupo era o gigantesco Elasmotherium das estepes da Ásia, animais do tamanho de um pequeno elefante e com um único, mas enorme chifre. Os Elasmotherium parecem ter sobrevivido até o século IX e ser a origem das histórias sobre os unicórnios e o k’i-lin da mitologia chinesa – além de vítimas de humanos que os caçaram até a extinção.

Hoje existem 5 ou 6 espécies de rinocerontes que já foram dos grandes mamíferos mais bem-sucedidos do planeta. Até nós aparecermos.

O rinoceronte-negro Diceros bicornis e o rinoceronte-branco Ceratotherium simum hoje ocorrem em bolsões na África, ao sul do Saara. Alguns especialistas sugerem que a população de rinocerontes-brancos que existia no Sudão, Congo e Uganda (Ceratotherium simum cottoni) é uma espécie plena e, de fato, o bicho parece diferente.

O rinoceronte-branco-do-norte também deve ser a primeira espécie de rinoceronte que varreremos da face do planeta neste século: restam apenas três.

Como todos sabem, isso é resultado tanto da expansão da população humana – conviver com mega-bichos passeando no seu milharal é difícil – como de um enorme mercado para chifres de rinoceronte na China e Vietnã.

Estes países "comunistas" alimentam um multimilionário tráfico que, usando até helicópteros, abate centenas de animais por ano por que idiotas ricos e adeptos de "medicinas tradicionais" acham que raspas do chifre – feitos da mesma substância que nossas unhas – curam de câncer a febre.

De meio milhão de rinocerontes no início do século 20, restavam 70 mil em 1970. Hoje há cerca de 29 mil e os números continuam a cair. Em 2014 foram mortos 1.215 rinocerontes apenas na África do Sul, país com alguns dos melhores parques do mundo.

A situação catastrófica também afeta as três espécies na Ásia. O hoje chamado rinoceronte-de-java Rhinoceros sondaicus ocorria no leste da Índia, Bangladesh, Myanmar, Tailândia, Laos, Vietnã, Camboja, Malásia, Java, Sumatra e sudoeste da China. Por um milênio, armaduras feitas de couro deste rinoceronte eram equipamento padrão dos exércitos da China pré-imperial e, no século XIX, eles eram tão abundantes a ponto de serem considerados uma praga nas plantações de chá em Java. Hoje restam 58-61 em uma reserva naquela ilha.

O hoje chamado rinoceronte-de-sumatra Dicerorhinus sumatrensis ocorria no sudeste asiático, do Butão à China, da Malásia a Sumatra e Bornéu, frequentemente lado a lado com o de Java. Hoje há menos de 100 indivíduos na península malaia e em Sumatra. Em Bornéu, sobraram três indivíduos.

Além da caça e destruição de habitat, um projeto de captura de animais para reprodução em zoológicos nos Estados Unidos e outros países foi um desastre, com 40 animais capturados e praticamente todos morrendo sem produzir descendentes.

A terceira espécie é o rinoceronte-indiano Rhinoceros unicornis. Esta espécie ocorria nas planícies de inundação dos rios Indus, Ganges e Brahmaputra, do Paquistão passando pelo Nepal, Butão, Índia e Bangladesh. Estas planícies são (ou eram) caracterizadas por grandes cheias anuais e um mosaico de florestas e áreas cobertas por capins muito altos formando um habitat chamado terai.

Esta espécie sempre impressionou as pessoas e foi protegida em alguns lugares por reservas estabelecidas pelas mãos de reis e potentados locais. Em 1514, um indivíduo foi enviado pelo sultão de Calicute como presente ao rei de Portugal, que depois o presenteou ao Papa. Infelizmente o navio com o pobre animal naufragou no caminho.

Como seus primos, a espécie também era (e continua) muito perseguida pela corja que comercializa seus chifres, que são pequenos mas dizem ter "poder concentrado". E isso levou a um tremendo declínio. No século XIX, os rinocerontes já estavam restritos a uma pequena área na planície inundável do rio Bramahputra entre o Nepal, Butão e Assam.

Em 1904, a Índia era parte do Império Britânico e a baronesa Mary Curzon, esposa do vice-rei, visitou a região de Kaziranga, no Assam, um estado no nordeste do país, com o objetivo de observar os famosos rinocerontes. Ela não conseguiu ver nenhum dos 10 a 20 rinos que sobravam no lugar, sobreviventes da caça intensiva. Seu guia, o rastreador de animais Balaram Hazarika, mostrou este triste estado de coisas e convenceu a baronesa e seu marido de que algo devia ser feito.

Em 1 de junho de 1905 foi criada a Kaziranga Proposed Reserve Forest, com 232 km². Kaziranga passou a ser uma Forest Reserve em 1908 e um Game Sanctuary em 1916. Em 1938, todas as atividades de caça (ainda permitidas para algumas espécies) foram proibidas e foram iniciadas as primeiras visitas de turistas à reserva.

Kaziranga se tornou um Wildlife Sanctuary em 1950 (o que eliminou conotações associadas à caça) e, em 1954, o governo do estado de Assam passou legislação endurecendo as punições a quem caçava rinocerontes. O mesmo governo estadual criou, em 1968, o Parque Nacional Kaziranga, com 430 km², ratificado pelo governo federal em 1974.

Em 1985, a UNESCO declarou Kaziranga Patrimônio da Humanidade — que em 2005 celebrou seu centenário –, incluindo homenagens aos Curzon.

Qual o resultado dessa história de contornos imperialistas? Vamos perguntar aos bichos.

O parque abriga 15 espécies de mamíferos globalmente ameaçados e realiza censos anuais das principais. Kaziranga abriga a maior parte dos 3.555 rinocerontes-indianos do mundo e fornece animais que são movidos para outras reservas. Enquanto em 1966 havia apenas 366 rinocerontes, em março de 2015 foram contados 2.401, comparados a 2.329 em 2014.

Toda a população planetária do barasingha Rucervus duvacelii ranjitsinhii, a versão indiana do nosso cervo do pantanal, está em Kaziranga. Em maio deste ano era de 1.129, comparado a 854 em maio de 2014. Bem, na verdade estava. Em dezembro passado, 19 animais foram capturados (com assistência de especialistas da SANParks – a agência que cuida dos parques nacionais sul-africanos) e transferidos para o Parque Nacional Manas, que também já recebeu rinocerontes de Kaziranga.

Kaziranga também abriga algumas das maiores e mais densas populações de tigres no planeta, com 118 indivíduos. Em 1972 eram cerca de 30. Populações de elefantes (cerca de 1.200) e búfalos (1.600) também estão aumentando.

Como observador de aves também devo dizer que das 479 espécies encontradas em Kaziranga, 25 são globalmente ameaçadas, embora muitas sejam fáceis de observar no parque. Estas incluem vários dos especialistas do terai, ameaçados pela conversão de seu habitat particular em arrozais para alimentar a explosão populacional da índia, Bangladesh, Nepal e Myanmar.

Como se chegou nesses resultados em uma situação onde todos estes bichos estão sendo massacrados por pressões de mercados predatórios como a China?

Começa com proteção efetiva
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Kaziranga é rodeado por cercas. Em muitos casos estas são eletrificadas para evitar que elefantes, rinocerontes e outros animais entrem nas áreas agrícolas que tornaram o parque uma quase ilha. Também há fossos e diques que tanto formam limites e barreiras bem visíveis como servem para o manejo das águas das grandes enchentes anuais.

Há 122 bases permanentes – na maioria construções de alvenaria sobre pilares de concreto – usadas pelas patrulhas armadas que guardam o parque contra caçadores, a pé, montadas em elefantes, de carro e de barco. O número de guardas-parque oscila ao redor de 800 (o que deve ser mais que o Brasil emprega) e recentemente foi reforçado por cães treinados para encontrar caçadores e seus produtos.

Os guarda-parques têm licença para matar os caçadores que encontram, política também adotada em vários países africanos já que o preço pago pelos chifres de rinoceronte motiva os caçadores a serem violentos e bem equipados. Além disso, o dinheiro do comércio de chifres tem financiado extremistas islâmicos baseados na vizinha Bangladesh. Por isso, às vezes são feitas operações contra os caçadores que incluem forças militares.

Isso pode ofender sensibilidades, mas é incontestável que sem isso rinocerontes, barasinghas e outras espécies seriam apenas lembranças. Apesar de todo o aparato, três rinocerontes foram mortos em 2014, mostrando que a conservação é uma guerra contínua.

Um ponto notável em Kaziranga é que os guarda-parques são tremendamente motivados apesar de seu equipamento antiquado – os rifles parecem modelos da Segunda Guerra – e condições de trabalho difíceis. Por exemplo, eles têm que providenciar sua própria comida. O orgulho de manter Kaziranga como um local onde a vida selvagem é abundante e a interação com os visitantes é parte da motivação e sucesso da guarda.

Uma parcela está no fato dos rinocerontes serem tanto o símbolo como também o orgulho do próprio estado do Assam e suas imagens estão em toda parte, incluindo estádios e símbolos de eventos (aqui usamos um brócolis transgênico para as olimpíadas do Rio…). E o movimento guerrilheiro separatista local concorda com o governo e também abate os caçadores quando os encontra.

Por fim, Kaziranga recebe recursos não apenas do governo, mas também de organizações não governamentais que atuam há décadas (a Kaziranga Wildlife Society celebrou o jubileu de prata em 1997). O parque está aberto a metodologias inovadoras que por aqui seriam anátema, como o uso de cães treinados pelos guarda-parques.

O sucesso de Kaziranga continua no seu manejo. Ele fica em uma planície de inundação entre o tremendo rio Brahmaputra (tão largo quanto o Solimões em alguns trechos) e as colinas Karbi Anglong. Cobertas por florestas, estas eram o refúgio original para animais que deixavam Kaziranga durante as grandes enchentes e são o habitat de elefantes que migram regularmente entre a planície e as montanhas.

Plantações de arroz e chá, uma rodovia, vilas e outras áreas ocupadas separam Kaziranga das colinas e grandes enchentes, quando as águas inundam quase todo o parque, às vezes encurralando animais e causando sua morte. Para evitar isso, o exército hindu (sim, o exército) construiu dezenas de morros artificiais, hoje com árvores, que atuam como refúgios para a fauna quando a água sobe.

Além disso, foram estabelecidos quatro corredores conectando Kaziranga com as colinas. Estes são faixas de florestas que chegam até a rodovia, além da qual está a planície de inundação, e são utilizadas principalmente pelos elefantes. Os corredores são um trabalho em andamento que envolve, entre outras coisas, a realocação de vilas e a conversão de plantações em habitat natural.

Como animais domésticos chegam muito perto dos silvestres (as cabras passam pelas cercas) há programas de vacinação destes para evitar que transmitam doenças aos silvestres. Isso está atrelado a esquemas de pagamento por danos causados por animais e um trabalho conjunto com as comunidades do entorno para minorar os conflitos entre humanos e a fauna.

O que escrevi até agora mostra que Kaziranga é um parque-fortaleza, completo com cercas elétricas, bunkers e guardas que atiram para matar. Mas é uma fortaleza com portas abertas.

Visitei Kaziranga ao longo de 5 dias em novembro passado. O primeiro contato com o parque se dá no trecho em que a movimentada rodovia NH37 contorna o seu limite sul. Ali, na beira do asfalto, há mirantes (isolados por uma cerca elétrica) de onde multidões (é a Índia) podem observar rinocerontes e Hog Deers pastando a algumas dezenas de metros.

Não há hospedagem no interior do parque, o que é uma pena, mas o entorno tem uma boa infraestrutura de hospedagem, incluindo dezenas de pousadas básicas a alguns resorts de categoria superior. Se alguém quer uma sugestão que combine conforto, serviço atencioso, ótima culinária assamesa e aves como as Great Hornbill e Blue-napped Pitta no quintal, procure o Jupuri Gar. Ele funciona no regime de concessão que muitos por aqui execram.

A Índia tem uma burocracia e maneira de pensar bem peculiares e muitas vezes ineficientes, bem no estilo brasileiro. Visitas ao parque devem ser feitas obrigatoriamente a bordo de um dos 167 jipes Maduri operados por um dos guias-motoristas pertencentes a uma das cooperativas locais. Como o parque é dividido em três setores, isso implica que pode haver uns 50 jipes em cada um.

A outra opção é o passeio montado em elefantes, que percorre rotas mais curtas apenas no início da manhã. Abrimos mão dessa "atração" por acharmos que isso não é diferente da escravidão humana, incluindo as senzalas e correntes.

Devido às cheias anuais o parque funciona apenas de novembro a abril. Abre às 7h para os jipes, mas, bizarramente, fecha para o almoço e todo mundo deve sair ao redor das 11h30. Abre de novo às 13h30, para fechar de novo às 16h30 (escurece ao redor de 17h00 graças ao fuso horário peculiar do Assam).

É lógico que este sistema só poderia ser imaginado por um burocrata de fazer orgulho a Brasília. É sumariamente desrespeitado caso apareça um tigre ou algum outro bicho especial (como aconteceu conosco), então o pessoal na saída nem esquenta muito.

Caso você esteja em um grupo de estrangeiros seu jipe contará não só com um motorista, mas também com um guarda-parque armado ostensivamente, por razões de segurança. O fato é que humanos são estúpidos. Por exemplo, uns dois anos atrás um grupo de observadores de aves estava em um dos corredores de elefantes ao mesmo tempo que os elefantes. Contrariando as instruções do guia, e os avisos dos elefantes, um turista holandês se aproximou dos animais e foi morto.

Isso seria só mais um caso de Prêmio Darwin se a família do infeliz não tivesse processado o governo do Assam por sua perda, o que resultou no fechamento daquela floresta para os observadores de aves estrangeiros (para os locais o local continua aberto). E aumentou-se o cuidado com gringos potencialmente estúpidos.

Tanto os motoristas como os guardas-parque têm um tremendo conhecimento sobre a fauna local e encontramos várias espécies difíceis graças a eles. Então, o que poderia ser uma obrigação burocrática e uma mala sem alça – como já tive que aturar aqui no Brasil – se torna um plus, graças à qualidade do recurso humano. Será que os gestores de Unidades de Conservação no Brasil captaram a mensagem?

Tudo isso em um país que é o 130º lugar no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano, bem atrás da potência Brasil, que ocupa a 75º posição.

Muito pintam os parques-fortaleza como playgrounds para ricos turistas estrangeiros. Bobagem. Em Kaziranga cruzamos com apenas três outros grupos de estrangeiros, mas literalmente centenas de jipes com turistas indianos que refletiam um país francamente multiétnico. Dominavam famílias, algumas excursões de escolas, mas também encontramos membros locais da fraternidade de observadores de aves – que lá são bem-vindos, ao contrário de lugares como alguns parques paulistas.

É lógico que o esquema de visitação poderia ser melhorado e Kaziranga manejado como um dos parques sul-africanos, que dão um banho. Mas é compreensível o cuidado em controlar os visitantes para evitar que os malfeitores entrem disfarçados ou alguém cometa suicídio ornamental em um lugar cheio de animais que podem ser fofos, mas são perigosos.

É evidente que uma parte significativa da economia local é movimentada pelo parque. Cada jipe demanda motoristas, mecânicos, peças de manutenção e combustível. Cada hotel precisa de funcionários, demanda alimentos a itens de reposição. Além do parque, por si só, criar centenas de empregos. Pense em 800 guarda-parques em contraste a 800 bolsas…

Este é um ciclo virtuoso que acontece na esteira da criação de qualquer parque bem manejado e aberto à visitação onde o turismo se estabelece, como aconteceu aqui no Parque Nacional da Serra da Capivara e em Iguaçu.

Mas nem tudo são flores e há problemas que vão do rio Bramahputra estar erodindo a parte norte do parque e reduzindo sua área, passando pelo custo de manutenção do parque e a morte de animais na rodovia. Além dos interesses de quem não se beneficia do parque.

Durante nossa visita a rodovia foi bloqueada por manifestantes que protestavam contra a remoção de uma vila do entorno e sitiaram a sede do parque nacional. A tropa de choque estava presente e tudo evoluiu para as mesmas cenas deprimentes de troca de pedras por golpes de cassetete que conhecemos daqui do Brasil, com 50 pessoas feridas.

Ao me informar a razão do tumulto descobri que, devido à caça ilegal, a Gauhati High Court (creio que o equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça) ordenou que as autoridades removessem as vilas situadas na chamada "sexta adição ao parque". Os 5 mil manifestantes diziam que não deixariam as terras de seus ancestrais e que as indenizações eram muito baixas. A imprensa notou que muitos dos manifestantes não eram da região e haviam sido trazidos de outras áreas sob os auspícios de um partido político local (o KMSS) e dos movimentos sociais. O imbróglio deve ir para a Suprema Corte da Índia.

Não parece o que vemos no Brasil, onde há quem ganhe a vida como cafetão de "populações tradicionais"?

Por aqui – e também lá fora – o conceito de unidades de conservação onde pessoas são visitantes, e não moradores, está sob ataque faz tempo. Os que gritam contra os parques-fortaleza fazem questão de ignorar o fato evidente de que os únicos lugares onde bichos como leões, tigres, rinocerontes, elefantes, búfalos, etc. ainda sobraram são aqueles onde pessoas são uma raridade ou visitantes controlados.

Aqui no Brasil basta ver onde foi que espécies como onças-pintadas, jacutingas e queixadas sobraram na Mata Atlântica. Comparemos a REBIO Sooretama ou a Estação Veracel – de propriedade privada – como o Monte Pascoal, privatizado pelos Pataxós.

Sem parques como Kaziranga, estas espécies seriam mera lembrança. Também vale notar que a experiência em "parques involuntários" como Chernobyl tromba de frente com as bobagens, inventadas em algum delírio lisérgico, sobre gente "criando biodiversidade", que se tornaram dogma por aqui.

Os socioambientalistas e os membros do judiciário que embarcaram neste discurso – incluindo defensores públicos e promotores que deveriam estudar mais ciência ambiental e menos doutrinação política – e defendem o fim de áreas estritamente protegidas são hipócritas que escondem o verdadeiro problema.

Unidades de conservação podem transformar completamente economias regionais, tornando-as mais robustas e sofisticadas. Entretanto, por mais que um parque gere empregos e movimente uma economia, há um teto para o número de pessoas que podem ser guarda-parques, motoristas de jipe, donos de pousada, mecânicos, chefs, etc.

O problema em Kaziranga – e da maior parte das áreas protegidas – não está da cerca para dentro, mas sim da cerca para fora. E o fato de naquele protesto haver bem mais gente jogando pedras nos policiais do que existem rinocerontes-indianos no planeta mostra qual é ele.

A região do terai experimentou e experimenta um tremendo crescimento populacional humano favorecido pelo controle da malária, imigração e pela revolução verde da década de 1970. Quando Lady Curzon visitou Kaziranga o Assam tinha 3,3 milhões de habitantes. Hoje são 22,6 milhões em uma área equivalente à soma da Paraíba e Sergipe. A Índia saltou de 361 milhões de pessoas em 1951 para 1,2 bilhão hoje, dos quais 800 milhões estão abaixo da linha de pobreza.

A maior parte desta população trabalha em uma agricultura de baixíssima tecnologia e não teria como ganhar a vida de outra maneira, seja pela falta de demanda em relação à oferta, seja pela falta de qualificação. Uma das poucas opções para quem está preso nesta armadilha é a caça ilegal, que na verdade não é uma opção.

Para esses o parque pode até ter valor emocional, mas os benefícios econômicos são poucos e zeram quando um grupo de elefantes atravessa seu arrozal migrando para as colinas ou um tigre apanha uma cabra que pulou a cerca.

A situação dessas pessoas melhoraria se o parque fosse eliminado e se deixasse que fizessem o que gostariam, transformando tudo em arrozais, fazendinhas, tanques de piscicultura e outras formas de uso tradicional?

Na verdade, não. Pobreza é o resultado da interação de fatores como péssima educação, desigualdade entre gêneros, altas taxas de fertilidade, falta de integração com redes comerciais, economia fechada, governos corruptos, serviços de educação, saúde e transporte medíocres, instituições que extraem a riqueza da população para uso próprio e sistemas políticos não representativos. O fim da pobreza passa por enfrentar estas questões, que têm mão dupla e não são fáceis.

No país do coitadismo é mais fácil culpar o parque ao lado – e eles têm recebido um monte de culpa – do que reconhecer que você é miserável porque sempre votou em corruptos em troca de uma esmola, ou porque a tradição da sua comunidade considera meninas acessórios domésticos, ou nunca cobrou uma escola decente do governo, ou preferia jogar bola a estudar, ou porque seu pai teve 15 filhos quando podia criar dois – apesar de sua mãe querer parar a fábrica por aí.

Conservação é a arte de ganhar tempo enquanto a crise da expansão humana não passa, e os parques-fortaleza são fundamentais para isso.

No século passado e no anterior, a Europa exportava seus pobres e seus empreendedores para o mundo (a mais benéfica influência cultural que o Brasil teve), deixando para trás um continente que era uma bagunça sociopolítica e um desastre ambiental. Espécies como águias, bisões, javalis, lobos, linces e ursos desapareceram da maior parte do continente, convertido em áreas agrícolas.

Neste século, houve na Europa a estabilização e mesmo redução da população, a crescente urbanização, o declínio de hábitos tradicionais como dar tiros no que se move, a agricultura mais eficiente, abandono de áreas agrícolas ruins e a regeneração das florestas. Com isso, espécies de grandes predadores voltaram a ocupar áreas onde não eram vistos há séculos. Mais que isso, estão sendo criadas paisagens onde humanos e a fauna podem conviver. Lógico, há conflitos, mas este processo, mostra um futuro possível. A mesma coisa ocorre em partes dos Estados Unidos.

Vencer as causas da pobreza significa também desacoplar o tamanho da população humana da área cultivada e retornar parte deste planeta para a Natureza, tornando-o não só mais resiliente e habitável, mas também mais agradável. Se conseguirmos fazer isso, os refugiados que hoje vivem protegidos em fortalezas poderão pisar fora de seus portões. Um sonho para o futuro.

Sonhar não custa nada. Também sonho com parques brasileiros que sejam tão bons quanto os da Índia, da África do Sul, da Argentina e da Tanzânia, estes países do primeiro mundo que esperaram resolver seus problemas sociais antes de cuidar de coisas menores como áreas protegidas….


*Fabio Olmos é biólogo e doutor em zoologia. Tem um pendor pela ornitologia e gosto pela relação entre ecologia, economia e antropologia.

Fonte: O Eco