Opinião

Toda Água é Benta

*Reuber Brandão

Lembro muito de minha avó paterna. Moleque de pouca idade, toda vez que minhas aventuras terminavam mal (algo corriqueiro), lá vinha ela acalmar meu choro e, invariavelmente, lavar meus arranhões com algumas gotinhas de água benta. Não sei se era a água ou o carinho de minha avó, mas sempre funcionava.

No misticismo católico caipira de minha avó, nascida e criada na zona da mata mineira, no vale do rio Doce, era possível uma bênção conferir poderes especiais à água. E, na inocência dos meus seis anos, essa ideia me fascinava. Poderia a água fazer milagres? Se minha amada avozinha dizia, era óbvio que sim…

Hoje, arrebatado pela vida no Planeta e entendendo a religião apenas como mitologia misturada a controle social, preservo meu direito a ter fé. Para mim, se existe algo que pode ser chamado de alma, algo partilhado e que une toda a vida, desde o seu gênesis, é a água. O meio, o substrato e a essência básica…

A vida foi concebida imersa na água primordial. A vida sempre ondulou ao sabor da água, seguindo seus caminhos e caprichos. Toda vida precisa estar cercada de água para ser gerada e mantida. Mesmo os personagens míticos, concebidos sem sexo, cresceram no interior de um útero materno, repleto de água. O mesmo aconteceu com todos nós, independentemente de credo, raça ou cor…

Lágrimas de dor, de alegria ou de saudade, são água. O suor do esforço, do trabalho ou do amor, é água. O sangue que jorra do coração, irrigando e alimentando o corpo, é água. O leite materno, que nutre e protege o que existe de mais importante, é água.

Somos água, Todos.

A água refresca, limpa a poeira do corpo, carrega os resíduos de nossas entranhas, leva o alimento para todos recônditos do nosso organismo. Sem água não vivemos, sem água nada cresce, sem água não há felicidade. Todos sabem disso. Por isso, cuidar da água, em todos os seus estados e manifestações, é sagrado, assim como são sagrados o nosso suor, o nosso sangue e nossas lágrimas. A água nos une e, em muitos casos, também nos separa… Podemos aprender muito sobre os seres humanos observando a forma como lidam, apropriam e valoram a água e outras manifestações da vida no planeta.

Quando criança viajava milhares de quilômetros, com minha família, para visitar minha avó. A rodovia margeava o rio Doce, onde circulavam os ônibus azuis da viação Mar Doce. Para uma criança, o rio se chamar Doce era algo realmente muito especial. Até minha adolescência, após a partida de minha avó, seguir grande parte do rio Doce era o caminho certo até Caratinga e a pequena São Sebastião do Sacramento, onde ela morava, na mesma casa onde meu pai havia nascido, antes das demandas da vida o conduzir, candango de tudo, ao Planalto Central, de paisagens tão diferentes das matas frescas que vicejavam no topo das montanhas, onde o café não havia chegado e onde era ainda possível encontrar monos-carvoeiros…

No entanto, não havia mais matas ao longo do rio Doce… Me lembro do meu pai dizendo que, mesmo sendo Doce, não podíamos nadar naquele rio, já poluído pelo esgoto das dezenas de cidades que pontuavam a paisagem às suas margens. O Doce já estava amargo… Já era vítima da ausência de cuidado, do descaso e do desperdício típico das pessoas acostumadas com a fartura de água. Desperdiçavam até o que era Doce…

Por fim, terminaram de destruir o rio Doce… Rejeitos seguem seu caminho morto, agora atingindo os frágeis ecossistemas marinhos no Espírito Santo e Bahia, solapando e envenenando homeopaticamente os delicados bancos coralinos e os organismos associados.

O tempo passou. Hoje, o que era Doce, se acabou. Não consigo evitar que lágrimas de tristeza salguem meus olhos, que a indignação, diante da aura de impunidade que circunda os poderosos torne minhas palavras azedas, e que um profundo sentimento de revolta amargue meu espírito.

No entanto, não é apenas a minha alma que está amarga. Acredito que a essência da humanidade, a alma das pessoas, está poluída pelo egoísmo, pela vaidade, pelo descaso, pela sedimentação de resíduos tóxicos, criados por valores equivocados. Não tenho fé na humanidade. Estamos poluídos pelo desrespeito à vida, pela ignorância transvestida em progressismo irresponsável, pela confusão no entendimento sobre o que é realmente importante, sobre o que realmente tem valor. Não respeitamos a vida. Estamos perdendo a noção do que é ser humano. De onde viemos e para onde vamos. Não conseguimos mais ver o que realmente é sagrado.

Por melhores que sejam as intenções, não adianta orar pelo rio Doce. Tais preces não irão desfazer o pecado original do nosso descaso quanto às nossas responsabilidades sobre o uso que fazemos da natureza. Do pecado original do nosso descaso com a vida. De pouco adianta resgatar os peixes do rio Doce, pois quem realmente precisa de resgate somos nós. Somos nós que precisamos de salvação, que precisamos depurar a poluição de nosso espírito e de nossa existência. Somos tão egoístas que imaginamos que nossos umbigos são maiores que o planeta. Somos soberbos pelo quanto acumulamos de dinheiro e poder. Nossa vaidade é proporcional à nossa pegada ecológica.

Se não resgatarmos nossa alma, não haverá humanidade, não haverá natureza, não haverá futuro. Apenas um mundo repleto de zumbis amorais, sem alma, sem valores, sem vida.

Desculpem pelo texto. Não é técnico, não é científico, não vale nada. É apenas um libelo, um triste desabafo diante da cegueira estúpida e da impotência diante da imbecilidade. Eu não podia nadar no rio Doce. Meus filhos não poderão imaginar que o Doce já foi um rio. Os que morreram, pessoas e animais, nunca mais. Temo pela herança dos filhos dos nossos filhos… Herdarão um planeta destruído, repleto de vidas corrompidas? Mas minha maior tristeza, na realidade, é nossa incapacidade para resgatarmos nossa própria alma. Realmente merecemos o inferno, para a felicidade daqueles que já se tornaram demônios.

Nós decidimos nosso destino, decidimos o que fazer com nossa alma. Cabe a cada um resgatar a si mesmo e o que é sagrado ao seu redor, sem reza, terço, manual de instrução cristã ou líder espiritual. Precisamos apenas de moral e de valores verdadeiros para lavar a poluição de nossa alma. E minha avó, na sua simplicidade e humildade, estava coberta de razão. Toda água é benta.

*Reuber Brandão é biólogo e doutor em ecologia, leciona manejo de fauna e manejo de áreas protegidas na Universidade de Brasília. Estuda répteis e anfíbios com paixão. Analista Ambiental do IBAMA entre 2002 e 2006.

Fonte: O Eco