Opinião

O enigma de Paris

*Marina Silva

Com palavras nos comunicamos: expomos ideias, narramos acontecimentos, analisamos situações. Com palavras também nos iludimos e nos enganamos. Mas na escolha das palavras revela-se exatamente o que – com elas – queríamos ocultar ou recalcar, o que causa mal-estar em nós e na civilização, como diria Freud. Tal é o paradoxo na escolha da palavra "ambição", com a qual se articulou o discurso e a mobilização da CoP-21, em Paris.

Está nos dicionários e no senso comum: ambição é "desejo desmedido pelo poder, dinheiro, bens materiais, glórias". Mesmo que se tente dar à palavra um significado positivo, é quase impossível retirar sua pesada carga simbólica. Ambição é igual a inveja, mata. Inclusive o sentido das coisas.

"Se por ambição quase destruímos o planeta, podemos agora inverter o sentido e ter a ambição de salvá-lo".

Foi esse apelo quase ingênuo que os operadores da CoP-21 fizeram aos seus líderes políticos.

Por que não usaram palavras como compromisso, cuidado, respeito à vida? Talvez porque assim revelassem a ausência destes valores nas decisões até aqui tomadas e na trajetória da ambição que foi percorrida, em que uma parcela da população do planeta foi levada ao cume do progresso econômico e tecnológico, mas agora está ameaçada de cair no abismo da crise ambiental e social que afeta a humanidade inteira. Para escapar, será necessário desprender-se do que nos arrasta para baixo. A propósito, a palavra desprendimento é exatamente o oposto de ambição.

Sem dúvidas, reduzir o limite "seguro" de aumento na temperatura média da Terra, de 2oC para 1,5oC é uma mudança digna de celebração. Esse feito se deve, sobretudo, ao contundente alerta da comunidade científica sobre a gravidade da situação, ao trabalho da diplomacia francesa, às articulações do grupo que se auto-intitulou "coalizão de alta ambição" e, também, à persistente cobrança dos movimentos sociais.

Mas será real esse resultado? Em artigo recente, o professor Eduardo Viola e a consultora Ana Cristina Fraga ressaltam a "profunda dissonância entre esse objetivo ambicioso e os caminhos genéricos e difusos que são formulados para atingi-lo". Nesta avaliação, com a qual concordo, são apontadas como principais razões da insuficiência do acordo: 1) metas nacionais não obrigatórias que, somadas, caso fossem plenamente implementadas, levariam a um aumento de quase 3oC na temperatura média da Terra; 2) o conceito de descarbonização foi eliminado e não há referência ao fim do subsídio aos combustíveis fósseis (que em 2013 somavam US$ 5 trilhões, 7% do PIB mundial) nem à criação de impostos nacionais de carbono, o que mudaria o eixo central da economia; 3) As propostas anteriores de reduzir emissões de gases estufa entre 70% e 90% até 2050 foram substituídas por um difuso "o antes possível".

É interessante atentar ainda para outros pontos que Viola e Fraga levantam, a exemplo da recusa, por parte dos países de renda média – exceto a China – de transferir recursos para os mais pobres. Por outro lado, os US$ 100 bilhões anuais de transferência dos países ricos para os pobres, prometidos em Copenhague em 2009, voltaram ao acordo, mas sem ficar claro o montante de recursos públicos, os únicos que poderiam ser realmente garantidos. Ademais, esse total, de apenas 0,4% do PIB dos países ricos, está longe do necessário.

Para completar, o sistema de monitoramento de implementação das metas nacionais estabelecido é fraco, pois países como China e Índia o consideram uma intrusão na soberania nacional. E o sistema de revisão das metas a cada cinco anos, começando em 2023, desestimula os países a aprofundarem suas ações porque cria um prazo infindável, ou uma falta de prazo real.

Além dessas insuficiências, acrescento outra igualmente grave: a inclinação de algumas lideranças políticas a submeter os acordos internacionais aos intrincados interesses (confessos e inconfessos) de seus países. Querem liderar nos eventos, onde é glamouroso perfilar-se com países tidos como avançados nas agendas ambientais, mas não lideram dando exemplo em seus próprios ambientes, cumprindo as decisões que ajudaram a aprovar. O Brasil dos últimos anos está à frente desse bloco do "façam o que eu digo, mas não faço".

Relembrando:

– o compromisso de um bilhão para as ações de mitigação e adaptação, assumido pelo Brasil em Copenhague, sumiu em Paris, caiu no vazio da falta de contribuição dos emergentes para compor o fundo, salvo a honrosa exceção chinesa;

– mesmo com todo o empenho da diplomacia brasileira para viabilizar o protocolo de Nagoya, até hoje o governo, atendendo as pressões dos grupos contrários à proteção ambiental, não o encaminhou para ratificação no Congresso;

– a marquetagem governamental aproveitou-se da ousada ideia de desmatamento zero, levantada por organizações civis, para regularizar terras ocupadas pela grilagem e mudar o código florestal. Só conseguiu zerar a continuidade da queda no desmatamento que, após dez anos, voltou a crescer em 16%.

O "acordo de alta ambição" alcançado em Paris corre, portanto, o risco de não se realizar na prática. O consenso pode revelar, ao final, a impotência das lideranças políticas para efetuarem mudanças no modelo de consumo e produção. A autorização para estabilizar as emissões em 1,5oC pode ser eloquente, porém ainda vazia. Não seria a primeira vez que a humanidade estabelece um padrão elevado sem criar condições de alcançá-lo.

Lembro o escritor Mia Couto e seu artigo "Os sete sapatos sujos". Um deles é a crença de que as declarações se cumprem só por estarmos de acordo com elas. Foi assim com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada na Assembleia Geral das Nações em 1948: avançou, nas mais diversas regiões do mundo, mas tão lentamente, com tanta descontinuidade, que milhões de pessoas ainda suportam sofrimentos inaceitáveis.

Temos agora um novo enigma, enunciado em Paris. Ele desafia governos, empresas, movimentos sociais, cientistas, cidadãos e cidadãs do mesmo modo que o enigma proposto ao Édipo Rei, de Sófocles: decifrem-me em metas, prazos, recursos e decisões práticas, ou vos devorarei no abismo da crise ambiental planetária. Afinal, não nos faltam ambições, fartamente realizadas, nem declarações, aplaudidas e celebradas. Só precisamos agora de compromisso com a urgência de ação.


*Marina Silva, ex-senadora e fundadora da Rede Sustentabilidade, foi ministra do Meio Ambiente e candidata à Presidência da República em 2010 e em 2014. Escreve mensalmente no Valor.

Fonte: Valor Econômico