Opinião

Acordo comercial Transpacífico: um sonho de livre comércio, um pesadelo climático

*Amelia Gonzalez

Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. A frase abre o último livro escrito por Milton Santos – "Por uma outra globalização" (Ed. Record) – geógrafo e professor da USP, morto em 2001. E me parece bastante oportuna para começar esta reflexão que pretendo dividir com vocês sobre a Parceria Comercial Transpacífico (TPP na sigla em inglês) que foi firmada no dia 4. Antes, preciso lembrar que não tenho formação em economia ortodoxa. Quero dizer com isso que busquei informações sobre este mega acordo comercial entre 12 países com o olhar de quem vem se espantando, dia após dia, com a percepção confusa de um mundo que, por um lado, faz tratados e conferências para tentar se livrar de um cenário de tragédias ambientais e, por outro, faz tratados e conferências para seguir a cartilha do desenvolvimentismo. Uns e outros seguem paralelamente, sem convergirem.

Para costurar essa história, busquei ajuda na teoria de Naomi Klein, que além de ativista ambiental é jornalista, portanto seus escritos são detalhados e cheios de referências. Esse é o lado do jornalismo que mais gosto: por sermos curiosos, não deixamos lacunas na hora de perguntar e pesquisar.

O acordo é resultado de oito anos de negociações que terminaram numa reunião em Atlanta, Estados Unidos. Foi feito entre Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Canadá, México, Peru, Chile, Japão, Vietnam, Malásia, Singapura e Brunei que, juntos, respondem por cerca de 40% do PIB global. Já está sendo, por conta disso, considerado histórico.

O Brasil tem, por enquanto, apenas um aceno de diálogo para o tratado feito pela embaixadora dos Estados Unidos Liliana Ayalde. Mas, já que os ativistas ambientais nos alertam para o fato de que todos seremos impactados, de uma forma ou de outra, é bom saber do que se trata. Faz parte das confusões desse mundo.

"Um sonho de livre comércio, um pesadelo climático". É assim que Naomi se refere aos acordos feitos para tornar mais fácil e atraente o fluxo de produtos e serviços mundo afora. No caso específico de produtos agrícolas, ela surpreende quando afirma que sua preocupação vai além da questão do circuito longo que os alimentos precisam trilhar para chegar à mesa das pessoas. O que influenciar mais para o aumento das emissões de carbono causadas pelo setor é a lista de exigências das grandes empresas de alimentos, que inclui desde um protecionismo agressivo de suas patentes à manutenção dos seus subsídios mesmo em tempos de crise.

"Isso ajudou a expandir o modelo de agricultura industrial baseado em produção de energia intensiva e em altas emissões de carbono pelo mundo todo. O sistema de alimentos é responsável por 19 a 29% das emissões de carbono", escreve ela.

No livro "Histórias da agricultura no mundo", escrito por Marcel Mazoyer e Laurence Roudart (Ed. Unesp) em cima de dados conseguidos após quatro anos de pesquisa, há a constatação de que esse modelo de "agricultura moderna", que usa muito capital, pouca mão de obra e polui bastante, penetrou apenas em setores limitados dos países pobres.

"Aproximadamente 80% dos agricultores da África, 40% a 60% dos da América Latina e da Ásia continuam a trabalhar unicamente com equipamentos manuais e só 15% a 30% dispõem de tração animal".

Esses dados expõem o que os ambientalistas propagam: o desenvolvimento que agride o meio ambiente não chega aos mais pobres. É possível estender o pensamento, com base nos dados cumulativos sobre a desigualdade social n o mundo, e pensar que também os macro tratados e acordos feitos em larga escala para gerar desenvolvimento não chegam aos mais pobres.

Não à toa a ONG peruana RedGe – Globalização com Igualdade, com foco nos direitos humanos, tentou fazer ressalvas no documento que oficializa a Parceria Transpacífica mas, segundo Naomi Klein, todas foram sumariamente retiradas na hora de o documento ser firmado. No site da ONG, a sigla TPP, originariamente Trans-pacific Partnership, recebe um tratamento sarcástico: "Todos Podemos Perder". Falta de transparência no texto do acordo é a principal queixa. Mas há também o temor de que as empresas transnacionais fiquem mais negligentes às questões ambientais. Um economista entrevistado pela rede de televisão Telesur constata que desde que seu país começou a adotar tratados de livre comércio com os Estados Unidos aumentou muito o número de demandas das empresas transnacionais contra o governo.

"No ano passado havia umas 30 demandas de cem milhões de dólares contra o governo. A maioria por expropriação indireta, o que significa que o estado não pode exigir seus padrões ambientais, trabalhistas ou de qualidade porque isso elevaria os custos dos empreendimentos. E tampouco pode suspender uma concessão por demandas sociais. As empresas são as que podem decidir o que fazer ou não fazer em nossos territórios", disse o economista José de Echave.

Essa liberalização tem sentido nessa confusão de mundo que tem como mantra o desenvolvimento a qualquer custo. Em teoria, empresas são sinônimo de geração de renda e emprego, portanto os estados precisam abrir-lhes as portas.

"De fato, essa hierarquia sempre foi tão evidente que os negociadores do clima formalmente declaram sua subserviência ao sistema de comércio. Quando o pacto do clima foi assinado na Rio-92, um dos tópicos era bem claro: "Medidas tomadas para combater as mudanças do clima não devem constituir… restrições mascaradas sobre o comércio internacional", escreve Klein.

No campo das emissões poluentes, por exemplo, um tratado de livre comércio numa era que se preocupa com o aquecimento global e suas trágicas consequências para os mais vulneráveis deveria prever algum tipo de sanção à extrapolação de gases de efeito estufa no transporte marítimo. No entanto, emissões deste tipo de tráfego, que sofreu um aumento de 400% nos últimos vinte anos, não são formalmente atribuídas a nenhuma nação ou estado. Ou seja: ninguém é responsável por diminuí-las, mesmo com o alerta de cientistas para o fato de que tais emissões vão aumentar três vezes até 2050.

Outra questão importante pontuada nos acordos comerciais e que confunde na hora de se fazer as contas sobre quem polui mais é que os países são responsáveis pela poluição provocada em seu território, mas não pela sujeira causada pela fabricação de seus produtos longe de suas fronteiras. Esta é de responsabilidade dos países onde esses produtos são fabricados. Para entender melhor: a poluição provocada no processo de fabricação da televisão que está instalada em muitas casas de diversos países é computada pelo governo do país que a fabricou, quase sempre China ou Bangladesh.

Nesse sentido, um estudo publicado em 2011 pela Academia de Ciências do Canadásobre as emissões em países industrializados que assinaram o Protocolo de Kyoto mostrou que a poluição nos países ricos parou de crescer quando eles puderam, por conta de tais tratados de comércio internacional, mover sua produção para outros territórios.

É como se o mundo ocidental não tivesse nada a ver com a poluição que deixa o ar da China tão sujo a ponto de causar sérias doenças em crianças, jovens, adulto. É como, também, se esses tratados que facilitam a vida das empresas transnacionais não fossem causar desemprego nos países não beneficiados. É como se também pudéssemos todos fechar os olhos e ouvidos à questão trabalhista na China, que até bem pouco tempo era tão dramática que os empregadores de fábricas precisaram instalar redes para evitar suicídios em massa. Ou como se não fosse conosco o fato de que trabalhadores de redes de comércio altamente lucrativas tenham que dobrar seu turno por alguns reais a mais em sua carteira para pagar dívidas, tão baixos são seus salários.

Termino as minhas reflexões com a ajuda de Milton Santos novamente. Para ele, estamos vivendo uma crise estrutural, cujo processo é permanente. Por isso, quando se buscam soluções não estruturais, "o resultado é a geração de mais crise".


*Amelia Gonzalez é jornalista, editou o caderno Razão Social, no jornal O Globo, durante nove anos, e nunca mais parou de pensar, estudar, debater e atualizar o tema da sustentabilidade, da necessidade de se rever o nosso modelo de civilização. Em pauta, questões ligadas à economia, ao meio ambiente, à sociedade.

Fonte: G1