Opinião

O CO2 do Brasil e a pedalada florestal

*Rafael Garcia

Na última sexta-feira, o governo divulgou o tamanho consolidado da área de desmatamento na Amazônia no período 2013-2014: foram 5.012 km². O número é ligeiramente maior do que a taxa preliminar anunciada no fim do ano passado, 4.848 km², mas foi motivo de comemoração por parte da ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, que tem agora no currículo as três menores taxas de desmate que o Brasil já registrou desde que a floresta começou a ser vigiada por satélite, em 1989. É uma notícia boa em comparação ao passado, mas quando essas taxas se traduzem em emissões de CO2, porém, é difícil ainda enxergar um cenário otimista.

Mesmo tendo caído 82% nos últimos dez anos, o desmatamento segue como o maior fator de emissões de gases de efeito estufa no Brasil. Uma área de 5.000 km², é bom lembrar, é mais que o triplo do município de São Paulo. A biomassa das árvores destruídas no território do país tem lançado ao ar algo em torno de 500 milhões de toneladas de CO2 por ano, mais gás carbônico do que toda a frota de veículos do país e todas as usinas termelétricas emitem juntos. Numa comparação com emissões rurais, o desmate da Amazônia contribui para o aquecimento global mais do que todo o rebanho de 200 milhões de cabeças de gado emite com seu metano, um gás-estufa poderoso, somado a todas as emissões da produção agrícola.

É comum, entretanto, conversar com técnicos do governo e escutar a afirmação de que as emissões do desmatamento já são menores do que as de energia e as da agropecuária. Como, então, se faz essa conta?

Emissões e Absorções

O mistério por trás do cálculo das emissões de desmatamento é que, ao apresentar os resultados, o governo abate do valor total o CO2 que está sendo absorvido por florestas em crescimento. No linguajar da Convenção do Clima da ONU, países registram seus desmatamentos sob a rubrica eufemística "mudanças de uso da terra", porque florestas em crescimento são contabilizadas como emissões negativas de carbono, ou absorções.

Isso não está necessariamente errado. É importante reconhecer o mérito de países que estão investindo em reflorestamento, pois o carbono que constitui uma árvore é essencialmente o "C" do CO2 que a planta absorve do ar. É carbono que estaria na atmosfera, se não estivesse nas árvores. Que florestas, então, o Brasil está replantando para justificar a entrada de emissões negativas em seu inventário? É aí que a porca torce o rabo.

O IPCC (painel do clima da ONU) determina que só podem ser abatidas dos números totais de emissões de um país as "remoções antrópicas" de gases-estufa, ou seja, as absorções de CO2 que ocorrem por meio de alguma ação humana.

Muitos países que ainda possuem frações importantes de seu território na forma de floresta, como a Indonésia e o Peru, abatem dos seus números de desmatamento as florestas secundárias (mata deixada para rebrotamento numa área outrora desmatada) e as plantações (incremento de biomassa da produção agrícola). Nada mais justo. O Brasil também faz isso, mas no nosso caso o governo inclui na conta também as absorções das florestas virgens situadas dentro de terras indígenas e de unidades de conservação, como parques e reservas.

Mata virgem

Se a mata virgem está aqui desde antes da chegada dos humanos nas Américas há mais de 10 mil anos, quem plantou aquelas árvores para que elas possam ser consideradas "ação antrópica"? O argumento do governo brasileiro é que o uso de papel e caneta para criar áreas protegidas por lei é uma interferência humana para preservar a floresta, logo suas remoções de CO2 devem ser consideradas antrópicas. O IPCC não contesta o critério, porque delega a cada país definir o que é antrópico ou não. E como não existe ainda um tribunal de contas para padronizar metodologias no cálculo do efeito estufa, o Brasil emprega essa espécie de "pedalada fiscal" da floresta para minimizar sua estimativa da emissão do desmate.

No período pré-2005, quando as taxas anuais de desmatamento chegavam a ser cinco vezes maiores que a atual, as remoções de CO2 por florestas primárias não interferiam muito nas contas. Um hectare de floresta desmatada, afinal, joga ao ar até 500 toneladas de CO2, enquanto um hectare preservado absorve apenas até 4 toneladas por ano.

Em 2015, porém, com as emissões de energia e de agropecuária do Brasil atingindo uma escala comparável à do desmatamento, talvez seja hora de o país deixar de usar esse recurso, que na verdade consiste em uma distorção sobre a conta real do CO2. E é uma distorção proporcionalmente grande.

Os últimos dados oficiais de emissões do Brasil, referentes a 2012, estimam que naquele ano o setor de florestas emitiu apenas 176 milhões de toneladas de CO2. Descontada a "pedalada florestal", porém, esse número salta para 466 milhões de toneladas, segundo relatório do SEEG (Sistema de Estimativa de Emissões de Gases de efeito estufa), iniciativa de pesquisa liderada pelo engenheiro florestal Tasso Azevedo e bancada pelo coletivo de ONGs Observatório do Clima. O projeto é a mais detalhada tentativa de realizar as contas de forma independente.

Rumo a paris

No final deste ano, chefes de estado do mundo todo se reúnem na cúpula do clima de Paris, onde governos vão disputar milímetro a milímetro suas metas de corte de gases-estufa para firmar um acordo. Não será uma surpresa se desta vez, em algum momento, o Brasil começar a sofrer críticas sobre as contas que usa como parâmetro para suas promessas. O Brasil ainda não sinalizou com clareza sua meta de redução proposta, mas está no horizonte do governo prometer zerar o "desmatamento líquido" em seu território, abatendo absorções da taxa de desmatamento real "bruto".

É razoável imaginar que dificilmente uma meta dessas vá ser considerada "ambiciosa", algo que países vêm cobrando uns dos outros. Se o Brasil deseja levar tão a sério as absorções de CO2 pelas florestas que "deixaram de ser desmatadas", seria honesto também incluir na conta o carbono que está "deixando de ser absorvido" nos pedaços da mata que sofreram corte raso. Abrir mão desse tipo de subterfúgio para manipular os números de emissões, porém, certamente traria ao país um pouco mais de respeito.


*Rafael Garcia é jornalista, foi bolsista do programa Knight de jornalismo científico no MIT

Fonte: Folha.com