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Opinião
Terra aquece mais do que o previsto e, como se sabe, os pobres é que já estão sofrendo os impactos
* Amelia Gonzalez
As últimas notícias não têm sido nada animadoras para quem se preocupa com os impactos negativos que o aumento da temperatura global já está causando. Foi publicado ontem (21) um relatório da Organização Meteorológica Mundial (OMM) mostrando que de janeiro a junho de 2015 a temperatura global média sobre superfícies terrestres e oceânicas foi a mais quente já registrada. Ao longo dos últimos seis meses, a temperatura média do mundo neste século foi de 0,85 graus acima da média do século XX, segundo o relatório.
Houve ondas de calor no sul da Ásia, Europa e bolsões nos Estados Unidos. No início deste mês as temperaturas em Londres, Madri, Berlim e Genebra se aproximaram dos 40 graus. No Japão, entre 13 e 19 de julho, quando os termômetros chegaram à marca dos 39 graus, 14 pessoas morreram por causa do calor e seis mil foram atendidas em emergência.
Na ocasião do lançamento do relatório, a OMM pontuou sua maior preocupação: o aquecimento dos oceanos. A temperatura média global da superfície do mar entre janeiro e junho deste ano também foi a mais alta já registrada.
Esta informação encontra outro estudo divulgado no mês passado pelo Institute of Atmospheric Physics (IAP), da China. Ele mostra que os oceanos estão aquecendo mais rapidamente do que previram os cientistas no último relatório do Painel de Mudanças Climáticas (IPCC na sigla em inglês). Acontece que à medida que os oceanos se aquecem, os mares sobem. À medida que os mares sobem, sobe também, por exemplo, o número de vítimas de enchentes e deslizamentos. Nos últimos dez anos, segundo informa a ONG Observatório do Clima (www.oc.org.br), oito municípios brasileiros foram afetados por dia por conta de catástrofes ambientais. Entre janeiro e junho deste ano, 1050 cidades decretaram calamidade pública pelo mesmo motivo e só em um ano – 2012 – o Anuário Brasileiro de Desastres apontou que mais de 16 milhões de brasileiros foram afetados.
Internacionalmente, o aumento da temperatura global e o aquecimento dos oceanos mostra a mais cruel das consequências: os países-ilhas e todos os povos que moram à beira de rios e mares estão seriamente comprometidos, podem desaparecer. São, em sua maioria, pessoas pobres que já lidam com essa vulnerabilidade com muita dificuldade. O aumento do número de refugiados por mudanças climáticas, que já alcançou a cifra de 59 milhões no ano passado, mostra bem isso. E essas pessoas dependem, com certeza, da ajuda dos países ricos para chegar a algum bom resultado.
No dia 16 deste mês, reunidos em Adis Abeba, a capital da Etiópia, numa Conferência da ONU sobre Financiamento para o Desenvolvimento, 193 representantes de nações do mundo concluíram uma Agenda de Ação que, em parte, pretende tentar resolver essa questão. Entre as dez iniciativas listadas no documento há uma que solicita aos países ricos (não se trata de acordo vinculante, ou seja, ninguém é obrigado a nada) que implementem o seu compromisso com a meta de mobilizar, conjuntamente, US$ 100 bilhões por ano até 2020 para atender às necessidades dos países em desenvolvimento. Ao mesmo tempo, os países são convidados a se empenharem para "eliminar gradualmente subsídios ineficientes aos combustíveis fósseis que levam ao consumo exagerado".
Diminuir o aquecimento global, mantendo a perspectiva de que até o fim do século o planeta aqueça 2 graus é prioritário, como se cansam de alertar os estudiosos, até para que o potencial de fonte hidrelétrica de energia seja pouco alterado. Isso também quer dizer reduzir o desmatamento, respeitando os biomas. Em entrevista à repórter Daniela Chiaretti para o jornal "Valor Econômico" de ontem (21), a professora de ecologia de ecossistemas e mudanças ambientais globais da Universidade de Brasília Mercedes Bustamante, que estuda o Cerrado há mais de duas décadas, disse que o governo deveria rever o percentual que permite desmatar até 80% da região. Para ela, só reflorestando todas as margens de rios daquele bioma é que se poderia evitar uma crise hídrica de graves proporções como a que já vem se abatendo sobre o país, já que o Cerrado tem um papel importante na distribuição de água.
Ocorre que esse tipo de preocupação e de alerta não é ouvido por quem tem nas mãos o poder de tomar decisões como esta.
A questão é que nem o aumento da temperatura do planeta, que pode causar falta de água, nem o aquecimento dos oceanos, que pode fazer sumir vários países ou mesmo o fato de os mais pobres serem os mais atingidos é novidade para mais ninguém. Como também não se pode mais fingir esquecer que não há relação entre o meio ambiente e nosso modo de vida, de produzir e de consumir e que esta associação vem sendo desprezada de maneira recorrente.
Hoje mesmo (22), também no "Valor Econômico", há um artigo assinado por Jim Yong Kim, presidente do Banco Mundial e Roberto Azevêdo, diretor-geral da Organização Mundial do Comércio, apresentando o relatório conjunto das duas instituições "O Papel do Comércio na Erradicação da Pobreza", que lembra o papel importante do comércio internacional na redução da pobreza "ao impulsionar o crescimento econômico e permitir acesso a novas tecnologias e inovações". O texto admite que ainda há muito a ser feito, e ficaria anacrônico se não fizesse isso. Promete promover novas oportunidades de comércio que contribuam com o desenvolvimento econômico. Mas não se refere a passivos, nem sobre o que pode ser feito para minimizá-los.
Na Encíclica Papal lançada no fim do mês passado, o chefe do Estado do Vaticano, Papa Francisco, faz referência a vários passivos que faltam ao documento lançado pela OMC e BID. Admitir falhas é um passo certeiro, como se sabe, para corrigi-las. Segundo o texto da Igreja, há "uma verdadeira dívida ecológica, particularmente entre o Norte e o Sul, ligada a desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico e com o uso desproporcional dos recursos naturais efetuado historicamente por alguns países".
E quem não sabe disso não tem estado ligado a informações e notícias, no mínimo, nos últimos 50 anos.
Essa é a questão. Muito já se sabe, muito já está sendo feito, mas sempre parece pouco diante dos problemas que não param de se avolumar. Mesmo reconhecendo a importância do fato de que, nos últimos 25 anos, um bilhão de pessoas no mundo saíram da pobreza extrema, como cita o texto assinado pelo BID e OMC, não dá para esquecer que ainda hoje as 85 pessoas mais ricas do mundo têm um capital acumulado de US$ 1,7 trilhão, o que equivale ao patrimônio de 3,5 bilhões de pessoas, as mais pobres do mundo, segundo o último relatório da ONG britânica Oxfam .
Naomi Klein, jornalista canadense e ativista ambiental mostra, em seu último livro "This Changes Everything", quão paralelas (e distantes entre si) aconteceram, nos últimos anos, as negociações do clima e do comércio mundial. Em 1992, as Nações Unidas assinaram no Rio uma convenção, chamada de United Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC), documento que serviu de base para todas as futuras negociações do clima.
Naquele mesmo ano foi assinado o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio, ativado dois anos depois. Também em 1994 foram concluídas as negociações estabelecendo a Organização Mundial de Comércio,que entrou em ação no ano seguinte. Em 1997, o Protocolo de Kyoto foi adotado, contendo as primeiras metas obrigatórias de redução de emissões. Em 2001, a China ganhou adesão plena na OMC e isso, para Klein, foi "a culminação de um processo de liberação de comércio que começara décadas antes".
"O que é notável nesses processos paralelos é que eles funcionam como se fossem desintegrados. Na verdade, comércio age como se as questões climáticas não existissem, ignorando as questões mais flagrantes que mostram como um impacta sobre o outro."
A jornalista lembra, por exemplo, que quando se transporta bens e alimentos de um canto do mundo para o outro há uma enorme emissão de gases que os tratados sobre o clima tentam reduzir. Lembra ainda que as leis que protegem patentes, consagradas pela OMC, impactam sobre as demandas que as nações pobres têm feito aos países ricos para transferência de tecnologias verdes que possam ajudá-las a desenvolver um caminho de redução de emissões. Klein denuncia ainda que há dispositivos que permitem que corporações transnacionais processem governos se forem multadas por danos ambientais, o que desestimula muitos governantes a fazerem tais regulações.
A boa notícia é que as cartas estão todas na mesa.
*Amelia Gonzalez é jornalista, editou o caderno Razão Social, no jornal O Globo, durante nove anos, e nunca mais parou de pensar, estudar, debater e atualizar o tema da sustentabilidade, da necessidade de se rever o nosso modelo de civilização. Em pauta, questões ligadas à economia, ao meio ambiente, à sociedade.
Fonte: G1