Opinião

Crise hídrica e crise ética

*Agostinho Vieira

A decisão de dividir o táxi era óbvia. Lugar ermo, pouca oferta de transporte e a chance de economizar. No caminho, as apresentações formais. Ele não ficou feliz em saber que eu era jornalista. Logo entendi: "tenho 11 anos de Petrobras". E o clima por lá? "Ruim, muito ruim. O ambiente está péssimo, tudo parado. Mas o pior são as pessoas que te olham como se todos nós fôssemos ladrões".

Acabávamos de sair de um congresso organizado pela Academia Brasileira de Ciências. O tema, crise hídrica no Brasil. Apesar da crise ética que afoga a Petrobras, naquele momento, o meu colega de viagem estava mais interessado em saber como a crise da água afetaria os negócios da empresa. As análises que os cientistas fizeram nos dois dias do evento mostraram que a preocupação tinha fundamento. Tudo indica que o ano de 2015 será, no mínimo, tão ruim quanto foi 2014. Mas existe uma boa chance de ser ainda pior.

Na verdade, a crise hídrica e a crise ética têm mais coisas em comum do que pode parecer num primeiro momento. Ambas são antigas, muito conhecidas e, apesar disso, continuam sendo empurradas com a barriga. Outra semelhança é que, nos dois casos, o fato de estarmos perto do fundo do poço pode ser uma excelente oportunidade para, finalmente, se fazer alguma coisa.

Existe uma lenda, muito difundida por consultores, executivos e livros de autoajuda, de que a palavra "crise" em chinês tem dois sentidos: perigo e oportunidade. Um dos primeiros a falar sobre isso teria sido o presidente John F. Kennedy, em 1959. Mais de uma vez, filólogos chineses e americanos desmentiram essa história. No entanto, ela continua sendo repetida. Porque é boa, simples e motivadora.

O problema é que soluções simples ou simplistas não resolvem as crises de verdade. Podem até adiá-las, mas não resolvem. Suponha que nos próximos meses a região sudeste tenha um volume de chuvas 30% superior à média histórica. Essa chuva cairia exatamente onde deve e encheria os reservatórios. Melhor ainda, não haveria tragédia, mortos, feridos ou desabrigados. Um paraíso. Com isso, ninguém precisaria se preocupar com coisas chatas como planejamento, gestão, obras caras, racionamento, controles e multas. A agricultura continuaria batendo recordes de produção, a indústria não veria seus custos aumentarem e as pessoas poderiam continuar lavando carros e calçadas como se não houvesse amanhã.

Na crise ética o risco é o mesmo. Imagine se a tese defendida pelo senador Aécio Neves num dos debates da campanha tivesse prevalecido: "A maneira mais fácil de acabar com a corrupção no Brasil é tirar o PT do poder". Será que estaríamos todos tranquilos agora? Alguém acredita mesmo que os maiores empreiteiros do país foram forçados por um gerente a pagar propina para não perder bilhões em contratos?

Sempre que ouço alguém defendendo essa versão carochinha, imagino um empresário vestido de chapeuzinho vermelho. Ele passeia na floresta com sua cesta de obras e é atacado por um lobo mau. Para quem ainda não entendeu, é bom deixar bem claro. Tomara que chova muito nos próximos meses e espero que todos os petistas culpados sejam presos e fiquem anos na cadeia. Mas lamento informar: isso não vai resolver o problema.

Não há como sair da crise hídrica e da crise ética sem sofrimento. Inclusive para os funcionários da Petrobras. As pequenas obras que o governador de São Paulo prometeu para melhorar o abastecimento só ficarão prontas em 2016. As maiores precisarão de 10 anos. Os reservatórios baixos de hoje são as doenças de amanhã. A palavra racionamento não pode mais ser vista como palavrão, sinônimo de incompetência. Ela será, cada vez mais, parte da solução.

Quando Barcelona enfrentou uma crise hídrica semelhante há alguns anos, duas medidas foram imediatas: limite de 100 litros de água por habitante/dia e multa pesada para quem ultrapassasse essa marca. A seca paulista é a mais grave dos últimos 80 anos. Ninguém podia prever. Mas agora é certo que esses fenômenos serão mais frequentes e se alternarão com enchentes fortes. É preciso ter planos de contingência claros com responsáveis definidos.

O mesmo vale para a questão ética. Está provado que a lei de licitações e a ação dos tribunais de contas não são suficientes para enfrentar o problema. O trabalho da polícia, do ministério público e da justiça precisa ser rápido e firme. Com penas duras para corruptos e corruptores, sem exceção. A certeza da impunidade precisa ser enterrada junto com a ideia de que a água jamais vai faltar.

*Agostinho Vieira é jornalista pós-graduado em Gestão de Negócios e Gestão Ambiental

Fonte: O Globo