Opinião

Democracia cinzenta

*Maria Dalce Ricas

A democracia teve diversas caras ao longo da história. Na Grécia Antiga tornou-se famosa pelo pioneirismo. Mas os escravos não estavam incluídos no conceito. E, assim, caminhando pelos séculos, lá foi ela tomando espaço e, felizmente, melhorando algumas coisas nas relações humanas. A gente precisa sempre se lembrar disso para não perder a esperança.

No mundo atual, seu charme está no diálogo entre segmentos sociais e entre o poder público e a sociedade. E aí, fazendo analogia bem chinfrim (vejam definição no Dr. Google) com a Grécia Antiga, pode-se dizer que nós (escravos) podemos palpitar junto ao governo e aos parlamentares (nobres), e os palpites transformam-se em "diálogo", eufemismo para legitimar o que eles fazem em nosso nome.

No momento em que escrevo esta coluna, ainda estou sob choque emocional da lei aprovada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais (ALMG), que traz o pomposo dizer: "Dispõe sobre as políticas florestal e de proteção à biodiversidade no Estado". Se fosse verdadeiro, diria: Dispõe sobre interesses do setor agropecuário para continuidade do desmatamento no estado de Minas, degradação do solo e da água. E quando a ECOLÓGICO for publicada, muitos de seus leitores já terão, provavelmente, ouvido deputados, o secretário de Meio Ambiente e, quem sabe, o próprio governador dizer que a lei foi democraticamente discutida com todos os segmentos da sociedade e que seu texto concilia interesse de todos. Mas a verdade é bem diferente. Participamos de três reuniões sobre o assunto nas quais alguns pontos foram acordados e, quase todos, descumpridos.

Um dos acordos foi que, nas áreas consideradas de extrema e especial importância para proteção da biodiversidade no estado, seria proibida a supressão de vegetação nativa. No dia 27 de agosto, a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) nos convidou para reunião na ALMG às 19h30, informando que o artigo estava causando pânico entre os proprietários rurais, que consideravam suas propriedades completamente desvalorizadas. Confiantes no diálogo, lá fomos nós, mais uma vez, "participar do processo democrático".

A proposta alternativa era remeter ao Conselho Estadual de Política Ambiental (Copam) a obrigação de revisar e regulamentar essas áreas para serem legalmente protegidas, conforme, aliás, já previsto no Art. 27-A, da Lei 14.309, ainda vigente. Conversa vai, conversa vem, ficou entendido que o licenciamento para implantação de projetos seria mais rigoroso e seria estabelecido um prazo para a mencionada revisão. O deputado Célio Moreira, presidente da Comissão de Meio Ambiente, disse que teríamos prazo até o outro dia para apresentar proposta de redação. E foi o que fizemos. Mas o que foi aprovado é pior do que o Art. 27-A citado.

Sabíamos a priori que a nova lei seria muito ruim, porque o governo e os deputados decidiram repetir integralmente o que consta da Lei Nacional aprovada pela "turmona" do deputado Aldo Rebelo e Kátia Abreu. Mas resolveram acrescentar algumas coisas. Entre elas, considerar como de interesse público barramentos comerciais para irrigação (o que é prerrogativa da União) num artigo e, em outro, permitir intervenção em Área de Proteção Permanente (APP) de Veredas. Juntando os dois, o resultado não poderia ser pior: autorizar barramento em Veredas.

Boa parte da população mineira e brasileira não conhece uma Vereda e não pode imaginar sua beleza e importância. No auge da seca, quando o sertão está esturricando, elas estão lá, com seus belos buritis, morada de araras-vermelhas e amarelas, jorrando água cristalina. O engenheiro Valter Neves, técnico do Instituto Estadual de Florestas (IEF) na região Norte de Minas e apaixonado por elas, resolveu estudá-las em seu doutorado, com base em pesquisa in loco onde compara através de dados a situação de uma Vereda preservada e de outra que sofreu intervenção humana. A conclusão não é surpreendente: a natureza a custo zero e com muito mais eficiência construiu as Veredas, mãe das águas, para gerar rios, armazenar água, abrigar animais e ajudar os seres humanos.

Acompanhei a votação pela internet. O deputado Pompílio Canavéz, do PT, saltitante de alegria, foi ao microfone louvar a nova lei como salvadora da agropecuária em Minas e dizer, com orgulho, que a extinção de APP para barramentos registrados até 2001, que consta do Código Nacional, e repetida na Lei Estadual, foi grande vitória dos produtores rurais e, ele, seu principal orquestrador. E sorrindo, revelou o apoio recebido dos deputados Domingos Sávio e Odair Cunha e a grande receptividade do Aldo Rebelo. Produtores rurais, não sei. Mas o setor energético deve estar realmente feliz! Podem causar gigantescos impactos ambientais, sem ter nem mesmo obrigação de proteger as margens dos reservatórios contra erosão.

O deputado Leonídio Bolças (PMDB) declarou-se eufórico, pois agora os agricultores não mais serão tratados como bandidos e o Ministério Público (MP) não mais poderá avocar a Lei 14.309/02 para processá-los. Os dois artigos mencionados estão sendo apoiados pelo governo. Como não podemos desistir, enviamos ofício a Antônio Anastasia, rogando, mais uma vez, que pelos menos em relação aos mesmos, sejam ouvidas pessoas que conhecem tecnicamente a situação. E se o governo mantiver seu apoio, que o faça conscientemente do crime ambiental que estará avalizando.


*Maria Dalce Ricas é superintendente executiva da Amda

Fonte: Revista Ecológico