Ensaio sobre a cegueira, entrevista com Fernando Meirelles
Mundialmente reconhecido por filmes como “Cidade de Deus” (2002), “Ensaio Sobre a Cegueira” (2008) e “Dois Papas” (2019), o cineasta e ativista ambiental Fernando Meirelles fala sobre os efeitos da pandemia, a crise climática e o comportamento da humanidade perante as ameaças ao futuro do planeta em entrevista ao UOL TAB.
“E se o vírus for o anticorpo do planeta? Li essa pergunta em algum lugar e me pareceu fazer sentido nesse meu momento holístico. Gaia tentando se livrar de um patógeno, nós”, disse.
TAB: Como você define este momento?
Fernando Meirelles: Do ponto de vista pessoal, esta brecada, necessária ou não e a que poucos podem se dar ao luxo, está sendo bem-vinda. “Happy days” [dias felizes]. Fora o tempo para ler e escrever, tenho tentado dar um mergulho para dentro. Ando tendo um tipo de epifania holística, sentindo na pele que sou parte de tudo mais. Tenho me emocionado com bobagens, como o cheiro de uma brisa ou uma libélula patrulhando um lago.
Estou especialmente sensível ao drama de quem está à beira de um colapso. Tentando algumas ações. A vida está ótima, mas às vezes dá vontade de chorar. Estou deixando vir essas sensações. Isso não tem nada de místico, é só uma consequência direta do tempo de ócio que estou me dando e que não me dava há anos. Vou sair transformado. E, se eu pegar a gripe e morrer, mais transformado ainda, mas aí não sei se vai dar para sentir a transformação.
TAB: O enredo de “Ensaio Sobre a Cegueira”, de 2008, baseado no livro de José Saramago (1922-2010), vem sendo comparado aos dias atuais. Como você avalia essa leitura?
FM: Minha motivação para filmar aquela história veio da angústia que sinto ao ver nossa civilização caminhando para o abismo da crise do clima e ambiental, sem que grande parte dela esteja sequer interessada em enxergar o buraco. É fato que o TikTok tem assuntos bem mais relevantes do que a acidificação dos oceanos ou o derretimento de geleiras, mas não é sensato ignorá-los.
As duas epidemias, a do livro do Saramago e esta de agora, nos mostram o quão frágil é nossa civilização. Estamos apoiados em quase nada. Um inimigo sem passaporte, sem religião, sem distinção de cor, raça ou posição social e, ainda, invisível parou parte do planeta. Tudo pode se perder num estalo.
TAB: Vivemos um presente distópico?
FM: A definição de distopia é um estado em que se vive em condições de opressão ou privação. Parece que chegamos lá. Nossa possibilidade de ir, vir e se reunir está restrita e praticamente todos estão sofrendo perdas ou privações, com exceção dos funcionários públicos, das fábricas de álcool em gel e dos bancos, é claro. Já em 2021, quem vai se dar bem mesmo é a indústria farmacêutica. As vacinas venderão mais do que pão quente. O lobby da “big pharma” [das grandes indústrias de medicamento] já deve estar pensando em como pressionar governos para que exijam atestado de vacinação contra a Covid-19 para qualquer deslocamento internacional ou contratação em grandes empresas. “Good business” [bons negócios]. Isso também tem cara de distopia.
TAB: E essa questão do “que fazer” na quarentena? Não tem a impressão de que o mundo está criando obrigações até na exceção? Em meio a tantas adaptações, é como se a bolha — aquela das redes sociais — insistisse em criar a necessidade de se fazer algo novo.
FM: Virei um outsider por me colocar fora das redes sociais. Nunca tive conta no Facebook, Instagram, TikTok, nada disso. Muito input [absorção]. Não gosto de barulho e estou numas de esvaziar o coco. Mas estou no Twitter para seguir os assuntos que me interessam e, vez ou outra, me arrependo por ter escrito alguma merda ali. Já a videoconferência, na minha vida, veio para ficar. Nos anos 1980 eu participava de um grupo que se encontrava todas as manhãs, às segundas-feiras, para estudar temas de interesse comum. Era o Cultural, como chamávamos. Nesta semana nos reconectamos e fizemos um primeiro encontro, desta vez virtual, depois de 30 anos. Falamos sobre o que será o novo normal. Esse reencontro também entrou na lista das coisas boas que o vírus está trazendo.
TAB: Os tempos obrigam a uma reinvenção ou, ao menos, a uma adaptação apressada, da indústria cultural. Shows cancelados viram lives. No cinema, agora testemunhamos o fenômeno dos filmes que sequer serão exibidos — sabe-se lá quando voltarão a funcionar. Como avalia essas mudanças?
FM: Imagino que salas de cinema serão dos últimos negócios a voltar. Será que voltarão em novembro ou dezembro? Esse período pode comprometer o hábito de assistir a filmes na tela grande de maneira irreversível. Sem os grandes festivais, Cannes, Veneza, Telluride, Toronto, que são as plataformas para os lançamentos dos filmes que marcarão o ano, toda a indústria deve sofrer mudanças. Se os cinemas voltarem a funcionar perto do fim do ano, a luta dos estúdios por salas será mais sangrenta do que as lutas dos blockbusters que tiveram seus lançamentos adiados. Cinema independente este ano? Esquece. As filmagens também estão adiadas, na melhor das hipóteses, até agosto. Isso muda também o calendário de lançamentos para 2021.
TAB: É uma ruptura ou uma evolução? Tem volta?
FM: Salas não devem acabar, mas devem sofrer uma queda em 2021, porque nesse tempo as plataformas de streaming terão avançado em seus serviços. Esse vírus vai dar uma catalisada num processo de substituição de hábito que já estava acontecendo. A indústria do cinema, assim como toda a indústria de espetáculo, incluindo aí o futebol, deve ser profundamente afetada e possivelmente modificada.
TAB: Você é arquiteto por formação. A arquitetura também é algo que precisa se adaptar ao que está ocorrendo? Teremos cada vez mais uma cultura do espaço vazio, dos vãos, do distanciamento?
FM: Não acho que esse vírus seja poderoso a ponto de mudar as cidades. Mesmo que seja muito letal, será muito rápido comparado ao tempo do planejamento e reformas urbanas. Mas certamente a experiência forçada de home-office deve ganhar um impulso enorme, acho que veio para ficar. E, aí sim, projetos arquitetônicos devem mudar. Logo veremos as construtoras pararem de oferecer os inúteis terraços-gourmets e passarem a oferecer home-offices à prova de filhos. Que, pomposamente, serão chamados de “home-office-armored-child-proof”. E vai vender bem. Na O2, produtora da qual sou sócio, íamos fazer uma reforma para caber uma equipe maior, mas agora já estamos repensando. Muitos profissionais que tiveram que ir trabalhar em casa estão felizes e produtivos assim e poderão continuar por lá, indo para a produtora só uma ou duas vezes por semana. Empresas com aqueles enormes escritórios, se forem espertas, poderão usar a experiência para repensar o uso do espaço.
TAB: Como você avalia o combate à pandemia no Brasil?
FM: O governo está conseguindo tomar medidas importantes e corajosas, dentro do possível, apesar de o presidente e alguns pastores jogarem contra as orientações. Estou curioso para ver quão técnico será este novo Ministro da Saúde [Nelson Teich, médico alçado ao posto na quinta-feira, 16] e torcendo para que seja técnico, mesmo. “Ciência, ciência, clamamos com veemência!”.
TAB: O clima de polarização que tomou conta da sociedade já nos últimos anos parece ter adquirido ingredientes novos — os quarentenistas, de um lado; os cloroquinistas, do outro. Estamos perdendo tempo, mais uma vez?
FM: Politizar um tratamento médico ou uma recomendação científica é uma insensatez que nem em uma comédia daquelas bem chulas faria sentido. Se houvesse algum argumento científico contra a evidência de que o isolamento funciona, a posição do cara lá [o presidente Jair Bolsonaro] ainda teria alguma sustentação. Mas seus argumentos são consistentemente inconsistentes. Ele conseguiu. A ciência virou questão de opinião. O certo seria sacrificá-lo, mas como não podemos, o jeito é continuar ignorando a figura. Ontem [sexta-feira, 24, data da saída de Sergio Moro], dois primos que chamam o b. [Jair Bolsonaro] de ícone vacilaram pela primeira vez: ‘Pode ter sido um erro, tem de ver como fica isso aí’. Eles odeiam o PT. E Moro era Deus. Se ele [o presidente] perder meus primos e mais um terço dos anti-petistas que o apoiam, acho que pode ser removido. Sinto que o [vice-presidente] Mourão assume em menos de um ano.
TAB: Outro discurso recorrente é que o combate à Covid-19 tem escondido outras questões importantes do debate, como o desmatamento da Amazônia. Como fazer para equilibrar isso com as outras preocupações urgentes?
FM: No primeiro trimestre de 2020, houve um aumento de 51% no desmatamento. O isolamento não chega na floresta, então os madeireiros devem estar aproveitando a distração de todos para derrubar. O culpado disso tem nome e endereço: [o ministro do Meio Ambiente] Ricardo Salles, que intencionalmente afrouxou os mecanismos de controle, talvez a mando do outro lá. Aliás, o Salles poderia participar daquela festa do sacrifício sugerida acima, também no papel de sacrificado. Me desculpem, mas a minha paciência e boa educação com a ignorância simplesmente acabaram.
TAB: Aliás, da última vez que conversamos, você dizia estar preparando um novo filme — e a temática seria ambiental. Como está essa empreitada?
FM: Ainda estou escrevendo o roteiro com o Braulio Mantovani [trabalharam juntos em “Cidade de Deus”, entre outros]. É um filme sobre a crise do clima, minha obsessão, não consigo evitar. Um filme para adolescentes que se passa em muitos lugares do mundo. O fato é que se você está preocupado com a Covid-19, melhor mudar a chave. Esse vírus é uma titica com data para acabar. Deve gerar uma crisezinha na humanidade, que vai durar uns quatro ou cinco anos, muito mais pela radicalidade das medidas tomadas do que pela letalidade em si, mas depois a vida segue — um pouco transformada, espero. É claro que, olhando hoje, o que chamei de crisezinha sentimos como uma tragédia histórica. E, de fato, é. Mas comparada à outra, que pode simplesmente colocar fim na história, os cinco anos de crise parecem pouca coisa. É com esta perspectiva que estou falando. Não quero parecer engraçadinho diante do possível milhão de pessoas que morrerão, se é que vá chegar aí, mas a crise do clima é de outra dimensão. É só mais lenta, o que a torna meio invisível. Mas é definitiva e vai escalar continuamente, até uma possível extinção da civilização como conhecemos, e vai doer. Há muita gente tranquila porque acredita que a ciência vai dar um jeito no aquecimento global, “o Bill Gates deve estar pensando em alguma coisa”. Só que não. Isso é pensamento mágico, é como fazer jejum para o novo coronavírus ir embora. A ciência tem, sim, muitas maneiras de mitigar a velocidade do aumento da temperatura na atmosfera e podemos ganhar tempo, mas parece que não estamos suficientemente interessados no futuro.
TAB: Considerando o desrespeito do ser humano com os recursos naturais, podemos imaginar que outros vírus assim não tardarão a aparecer?
FM: E se o vírus for o anticorpo do planeta? Li essa pergunta em algum lugar e me pareceu fazer sentido nesse meu momento holístico. Gaia tentando se livrar de um patógeno, nós. Mas também já andei lendo que há grande possibilidade de esse vírus ter sido criado como arma biológica no laboratório do exército norte-americano em Fort Detrick, no estado de Maryland, nos Estados Unidos. Se for isso, a teoria do anticorpo contra o patógeno perde o sentido. Gaia pode ter enlouquecido alguns humanos intencionalmente, fazendo-os gostar de arminhas, incluindo as biológicas, para induzi-los a um erro autodestrutivo. Juro que também considero essa possibilidade.
Fonte: OUL TAB