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Entrevistas
“Temos que nos assustar para agir”, diz Suely Araújo sobre desastre no Rio Grande do Sul
Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto, Stela Diogo.
Nesta semana, a catástrofe climática que assolou o Rio Grande do Sul chocou todo o país. Devido às fortes chuvas, registrando mais de 800 mm – valor quase oito vezes a média climatológica esperada para todo o mês de maio –, mais de 400 municípios do estado foram afetados. O número de mortos já passou de cem e não para de crescer. Milhares de pessoas estão desabrigadas. Não é possível contabilizar com precisão os impactos deixados em meio ao cenário devastador.
Não é a primeira vez que isso ocorre. E também não será a última. Em apenas um ano, o estado foi vítima de dez episódios de chuvas extremas, aponta Rodrigo Manzione, especialista em recursos hídricos da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Não foi por falta de aviso. Cientistas e ambientalistas alertam há décadas autoridades públicas do mundo todo, mas continuam ainda, em sua grande maioria, não sendo ouvidos.
Segundo especialistas, as políticas ambientais precisam ganhar centralidade no desenvolvimento de políticas públicas, se desejamos assim ter acesso a um futuro menos trágico. Porém o Rio Grande do Sul tem andado na contramão dessa recomendação. Isso porque, em 2019, o governador Eduardo Leite (PSDB) flexibilizou quase 500 pontos da legislação ambiental do estado, sob a justificativa de desburocratizar o processo para quem quer empreender.
Para refletir sobre as falhas da ação do poder público e entender o que é preciso mudar com urgência para construir uma política ambiental eficiente, o episódio 119 do Pauta Pública recebe a ambientalista, urbanista e advogada Suely Araújo.
Na conversa, a ex-presidente do Ibama e coordenadora de Políticas Públicas no Observatório do Clima reflete o que mantém de pé esse ciclo de tragédias climáticas se repetindo. “Antes, a crise climática era conjugada no futuro. Agora, estamos conjugando no presente essa grande mudança. E isso gera uma série de mudanças, alterações. É assustador, mas temos que nos assustar para poder agir”, explica.
A pesquisadora aponta que não dá mais para agir da mesma forma sobre esses eventos extremos. Segundo ela, é preciso adaptar tudo, todas as ações governamentais e comportamentos da humanidade, não apenas as políticas públicas que discutam as adaptações às mudanças do clima.
[Clarisse Levy] Em setembro do ano passado, o Rio Grande do Sul já estava sofrendo com chuvas extremas e enchentes em mais de 70 municípios, contabilizando ao menos 40 mortes. Neste ano, a tragédia ganhou outra proporção. Quais são os principais fatores que, na sua avaliação, mantêm esse ciclo se repetindo e se aprofundando em catástrofe?
A crise climática está no coração disso tudo. Há muito tempo atrás, os cientistas já apontavam para essa realidade de eventos extremos, cada vez mais intensos e frequentes. No processo da Rio-92 e da Eco-92, esse era um dos temas em debate. Também estava no painel intergovernamental das Nações Unidas sobre Mudança do Clima, fundado em 1988, em que os principais cientistas mundiais – inclusive alguns brasileiros, preocupados – vêm orientando os seus esforços para a análise da crise climática.
Só que antes ela era conjugada no futuro. Agora, estamos conjugando no presente essa grande mudança. E isso gera uma série de mudanças, alterações. Então, ao mesmo tempo em que se espera mais eventos ligados à chuva, à alta pluviosidade no Sul do país, na bacia do Prata, há uma previsão de redução do volume hídrico na região amazônica – seca, inclusive, que tem se repetido também no Pantanal, a maior planície inundada do planeta.
Se não vamos reverter tudo – porque a mudança climática é uma realidade –, nós podemos minorar e nos preparar de uma forma melhor para que os impactos desses eventos extremos não sejam sempre tragédias como a que está ocorrendo atualmente no Rio Grande do Sul, porque é muito assustador e muito triste ver.
Temos que ir para frente, aprender com tudo isso e nos prepararmos para lidar com esse tipo de situação para que não chegue a essa tragédia toda. Elaborar planos de contingência para o curto prazo, antes do evento – o que não me parece que agora realmente foram colocados em prática, já que se sabia que ia chegar a chuva forte, e que seria grande, apesar de não saber a dimensão total.
Precisamos fazer adaptação à mudança do clima, tudo precisa estar adaptado, todas as políticas públicas precisam ser moldadas para essa nova realidade climática. O Rio Grande do Sul, o Brasil e o mundo têm que acordar para isso, na verdade.
[Andrea Dip] De que maneira isso que a gente está vendo no Rio Grande do Sul e em outros eventos extremos que a gente já viu, como, por exemplo, a seca da Amazônia, tem relação com o que a gente tinha, tem ou que possa ter de legislação ambiental no futuro?
É importante as pessoas entenderem esse vínculo porque o Congresso Nacional, a maioria dos parlamentares têm dificuldade de entender que tem relação. No caso brasileiro, assim como de outros países com florestas tropicais que desmatam muito, como Indonésia e Congo, 48% das nossas emissões são derivadas de desmatamento, e o Brasil é a sexta maior emissora de gás de efeito estufa do mundo. Não somos uma China nem os Estados Unidos, mas a gente emite bastante.
Depois, 25% das emissões decorrem do agro, principalmente da pecuária. Em seguida, entra a geração de energia elétrica, com 18%, em que temos uma situação até melhor que a maior parte dos países.
Porém temos muito a fazer: controlar o desmatamento provocado pelo agronegócio; priorizar de forma absoluta a agropecuária de baixo carbono, com plantio direto, com rotação de pastagem e sistemas integrados de lavoura florestal. Temos que mudar a cara, na verdade, do agro do país para uma agricultura voltada a não emitir poluentes. Não vamos zerar tudo, porque a pecuária é forte no país, mas podemos minorar os efeitos da pecuária, no mínimo, garantindo rotação de pastagem.
Tem uma série de ações que dá para fazer para melhorar as emissões. Porém, mesmo melhorando, a mudança climática já está muito caracterizada. Por isso, temos que trabalhar com adaptação. Por exemplo, para adaptar a área rural no Rio Grande do Sul, o que tem que fazer? Tem que fazer muita restauração de vegetação nativa, não deixar uma mata ciliar sem estar coberta de vegetação. Porque as matas ciliares não vão impedir enchentes, mas, se estiverem realmente consolidadas em toda a rede dos rios, vão diminuir a quantidade de água que vai invadir as áreas ocupadas. Pelo menos ajuda. Só que isso tem que ser feito para ontem.
Já nas cidades, temos que afastar o potencial construtivo da beira dos rios. Nesse ponto, o Brasil está fazendo ao contrário, porque em 2021, no governo Bolsonaro, foi aprovada uma lei que delegou aos municípios a fixação das faixas marginais dos rios, das APPs hídricas.
Isso está levando à redução das faixas de proteção no lugar de aumentar, o contrário do que nós deveríamos fazer. E, como esse projeto, tem vários no Congresso Nacional que atacam a questão da vegetação nativa, o licenciamento ambiental. Como se tudo se resolvesse em um apertar de botão, que já sai a licença. No Rio Grande do Sul é assim, mas eles querem isso no país inteiro.
O impacto dessas alterações gera empreendimentos que você não vai poder cobrar, porque não vai ter estudo ambiental para analisar e poder cobrar que esteja realmente adaptado à questão ambiental e às condições climáticas.
No Congresso, quando a gente fala nas discussões sobre colocar o elemento clima na lei de licenciamento, sai todo mundo gritando como se isso fosse um absurdo. Então, assim, existe uma incompreensão, um cinismo, porque não é possível que não entendam que têm relação o que está sendo votado com a questão climática. Porque eu acredito que a população brasileira entende, então seus representantes também devem entender.
A visão não pode ser tão de curto prazo a ponto de assumir a legislação ambiental como um entrave a ser afastado, visão essa que não está presente só no Congresso Nacional, como em várias assembleias legislativas. Não são todos os parlamentares, ainda bem, tem aqueles que lutam pela causa ambiental, mas são minoria. Minoria no Parlamento nacional e nos legislativos estaduais também.
[Andrea Dip] Penso que muitas vezes, quando a gente fala sobre desmatamento, vem logo à nossa cabeça a Amazônia. Mas a gente sabe que esse é um problema que afeta também os outros biomas. Do ponto de legislação, de que maneira, por exemplo, o desmatamento no Cerrado ou nos Pampas, no caso do Rio Grande do Sul, contribui para a situação que a gente tem hoje?
O Rio Grande do Sul flexibilizou bastante sua legislação ambiental em 2019, numa grande mudança do Código Ambiental do estado, já com o atual governador liderando o estado e liderando, inclusive, essas mudanças.
Houve flexibilização no licenciamento ambiental para esse tipo de licenciamento automatizado, em que sequer estudo ambiental é entregue. Fica tudo na responsabilidade do empreendedor, que tem alguém que vai assinar uma anotação de responsabilidade técnica, mas que, se acontecer alguma coisa grave, não vai ter condições nenhuma de pagar nada de indenização para ninguém. Então, ter responsável técnico não substitui de forma alguma uma análise estatal dos empreendimentos do ponto de vista ambiental.
O Rio Grande do Sul flexibilizou o licenciamento e a proteção no entorno de áreas protegidas e facilitou a mineração. Tirou do Código Ambiental do Rio Grande do Sul o fomento e o apoio do estado às atividades que o protegem. As organizações ambientalistas do estado têm uma lista enorme e falam que são perto de 500 alterações no Código Ambiental do Rio Grande do Sul. Muita coisa! E mais recentemente o governador sancionou uma lei que flexibiliza as APPs hídricas também para construção de reservatórios. Estão tentando fazer a mesma coisa no Congresso Nacional.
Mas, além da questão da flexibilização da legislação – e o correto no Rio Grande do Sul seria voltar a tornar o Código Ambiental do estado mais rigoroso –, nós temos que assegurar uma mudança no padrão de uso e ocupação do território no estado.
Isso porque o estado é forte na agricultura, mas é uma agricultura que se desenvolveu historicamente desmatando. Então, nós temos que conseguir, agora na reconstrução, que o modo de ocupação dessas áreas seja ajustado a novos padrões de relação com os recursos naturais.
É muito importante, isso é medida necessária. Por isso, temos que cuidar da infraestrutura das cidades, mas temos também que cuidar do interior, da área rural do estado. Porque, quando você não tem vegetação nativa, a água, quando cai, escorre, já que não tem barreiras naturais.
E agora a água que caiu foi em uma quantidade muito acima do esperado por qualquer um. Mas, mesmo com essa quantidade de água, se você tivesse barreiras naturais mais consolidadas, isso pelo menos amenizaria um pouco.
Nesse esforço de adaptação à mudança do clima, há diferentes políticas públicas: a política agrícola, habitacional, de infraestrutura de transportes e de energia. Tudo isso tem que ser moldado por você assumir que a realidade climática é outra.
Então, não adianta de forma definitiva você arrumar recursos emergenciais. É importante, eles têm que vir e ajudar aquela população que está numa tragédia humana, natural, social. As pessoas estão perdendo tudo o que têm. Temos, sim, que arrumar dinheiro para essa emergência.
Mas nós temos mesmo que investir para quando começar a reconstruir em novos padrões. Senão tudo isso vai se repetir, essa é a questão. E tem que ser uma reconstrução pautada por uma visão de economia e de atividades da sociedade que enxerguem a importância da proteção ambiental e das regras ambientais. Porque tem um negacionismo climático embutido em muitas decisões dos governantes e dos políticos que vem também acompanhado de um negacionismo da importância da política ambiental, que é eminentemente regulatória.
Quando a gente mexe com o meio ambiente, a gente quer criar autorizações, registros, licenças, e tudo isso incomoda. E tem que incomodar mesmo, porque é só obedecendo essas regras que a gente vai conseguir melhorar um pouco essa situação.
Colaboração: Danilo Queiroz