Entrevistas

O Black Friday de terras públicas na Amazônia acabou?

O Black Friday de terras públicas na Amazônia acabou?

Embora tenha sido criada para resolver conflitos fundiários com pequenos produtores rurais, sobretudo na Amazônia, a Medida Provisória 910/19 tem sido alvo de críticas por desvirtuar-se de seu objetivo inicial e contribuir, na prática, com a ação de grileiros e criminosos ambientais. Publicada pelo governo Bolsonaro no final do ano passado, a proposta sofreu alterações no Congresso e tornou-se ainda mais perigosa para o meio ambiente.

Em entrevista ao Instituto Humanitas Unisinos (IHU), o doutor em Ecologia e cofundador do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Paulo Moutinho, explicou os efeitos da medida, a quem se aplica e como ela fere a legislação ambiental brasileira.

“Está mais do que claro que a regularização fundiária é fundamental para que se dê garantias para os produtores e para que se reduza o desmatamento na região. Mas, buscar isso anistiando grileiros e entregando o patrimônio dos brasileiros a preços camaradas a desmatadores ilegais, não ajudará em nada”, destacou.

IHU – Qual é o conteúdo da MP 910 e em que contexto ela é editada pelo governo?

Paulo Moutinho – A MP busca desburocratizar e incentivar a regularização fundiária no país, propondo os meios para que posses de terras públicas sejam legalizadas. A intenção com a MP é válida, já que busca acabar com a insegurança fundiária sobretudo dos pequenos produtores que, há muito, ocupam pacificamente a terra, mas ainda não têm sua situação fundiária legalizada. O problema, contudo, com esta MP é tanto de forma quanto de conteúdo e menos de objetivo explícito. A MP abre enorme espaço para a legalização de posses oriundas de grilagem e beneficia quem desmatou ilegalmente nos últimos anos contrariando o código florestal.

IHU – A MP 910 irá regularizar as terras públicas não destinadas que estão ocupadas. Pode nos explicar o que são essas terras, quais suas dimensões territoriais e em que regiões do Brasil elas estão localizadas?

P. M – A União detém um volume considerável de terras públicas no país, em especial na Amazônia. Se são públicas, estas terras, na verdade, pertencem ao povo brasileiro. É um patrimônio dos brasileiros, um patrimônio nacional (e não do governo). São terras públicas, por exemplo, aquelas destinadas a diferentes categorias fundiárias, entre elas Florestas Nacionais de Produção, Unidades de Conservação, terras indígenas etc., bem como as chamadas terras ainda sem uma destinação a um uso específico que é dada pelo governo (ou terras devolutas).

Acontece que parte destas terras, ao longo das últimas décadas, vêm sendo ocupadas por posseiros e produtores agrícolas que querem produzir. No entanto, também muita área pública tem sido ocupada por grileiros que não querem produzir nada, mas, sim, obter vantagens econômicas com a especulação imobiliária.

Ganhar dinheiro fácil, ocupando ilegalmente terras públicas, compor base eleitoral local, apoiar políticos locais, demandar infraestrutura básica para depois vender a terceiros com margens grandes de lucro. A ocupação e o desmatamento em terras públicas só na Amazônia bateram recorde nos últimos anos. Em especial em 2019, quando mais de 35% do desmate na região ocorreu dentro de terras públicas.

IHU – Qual é o perfil dos possíveis beneficiados com a edição da MP 910? Eles são pequenos, médios ou grandes agricultores ou produtores rurais?

P. M – Deveriam ser os pequenos. Mas a MP alterou o tamanho dos limites de quem pode ser regularizado, incluindo aí o que podemos chamar de grandes produtores. Ou seja, proprietários com posse de até 2.500 hectares poderão se beneficiar. Dizer que quem tem uma propriedade deste tamanho pode ser considerado pequeno produtor só pode estar brincando. Importante lembrar que esse tamanho de área corresponde a mais de 60 Módulos Fiscais no Amapá e algumas regiões do Pará ou a 45 Módulos Fiscais em Rondônia. Sendo que são considerados pequenos imóveis rurais pela legislação agrária e ambiental áreas com até quatro Módulos Fiscais.

IHU – É possível estimar quantas pessoas serão beneficiadas com a MP?

P. M – O governo fala em 600 mil posses, sendo a maioria delas na Amazônia, mas este é um número difícil de calcular, pois dependerá da peneira (ou a ausência dela) que o governo vai usar para qualificar quem está elegível ao benefício da regularização.

IHU – Apesar das críticas que tem recebido por conta da edição da MP 910, o governo argumenta que ela permitirá a regularização fundiária e a desburocratização de concessões de títulos a agricultores que ocuparam áreas da União de forma pacífica. Como avalia a justificativa do governo?

P. M – Como comentei antes, não se pode negar que há insegurança fundiária para muitos produtores pequenos que ocuparam, por diferentes motivações, terras públicas no passado. E, em muitos casos, o fizeram de boa-fé. Mas, como separar estes produtores, especialmente aqueles da agricultura familiar que têm propriedades pequenas (100 hectares), dos grileiros que especulam, deliberadamente e através da violência, com a terra? Se esta separação não for feita de forma adequada, o risco de estar legalizando o ato deliberadamente criminoso de ocupação de terra pública é bem grande.

IHU – De outro lado, os críticos chamam a MP 910 de “MP da grilagem”, porque ela premia desmatadores e estimula a destruição de novas áreas de florestas. Concorda com essa crítica? Como essa MP poderá favorecer ainda mais o desmatamento no longo prazo?

P. M – Do modo como está proposta, a MP desvirtua-se do seu objetivo: beneficiar pequenos produtores. Beneficiar médios e grandes proprietários, como comentado anteriormente, sem que haja uma comprovação mais rígida da posse da terra, por exemplo, acaba sendo um sinal ruim. Inclusive sem a exigência de uma vistoria in loco. Primeiro passa a ideia de que a ocupação de terras públicas será tolerada e, em algum ponto no futuro, esta posse ilegal será regularizada. Isso reforça em muito a estratégia de grilagem que é do tipo “senta e espera”. Ou seja, senta-se em cima da terra da União, ocupando-a ilegalmente, coloca lá algumas cabeças de gado para dizer que a terra é produtiva, e espera para vendê-la para algum desavisado ou fica aguardando pela regularização da posse em algum momento futuro. Este sinal é a chave para se continuar desmatando florestas em terras públicas. E ainda coloca o pecuarista sério em maus lençóis, pois desgasta mais ainda a imagem de quem conduz esta atividade de modo sério. E não são poucos que o fazem. Enfim, o Congresso terá que ter muita atenção na análise desta MP.

IHU – Os críticos, assim como o senhor, também dizem que depois de regularizadas, estas terras possivelmente serão vendidas pelos atuais beneficiados pela MP, que lucrarão com a venda de terra. Pode nos dar exemplos de como isso já tem acontecido em alguns locais do país por conta da edição de MPs similares?

P. M – O lucro dos beneficiários, que não são os pequenos produtores, já começa quando do ato da regularização, pois a União, por dever, cobra pela terra ocupada daquele que será regularizado. Acontece que esta cobrança é de valores irrisórios (geralmente) de 10% a 50% do piso de uma tabela de preços da terra que é estabelecida pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Então, já na largada, há um lucro grande, pois a cobrança pela terra, que foi ocupada sem custo pelo grileiro, tem seu valor muito abaixo do valor de mercado.

Com a legalização finalizada, aí então o valor da terra pode aumentar ainda mais e os lucros aumentam. Ou seja, o grileiro rouba o patrimônio dos brasileiros e ainda estes mesmos brasileiros deixam de receber um preço adequado pela terra invadida. Somos roubados e ainda por cima pagamos a quem nos roubou. Estudos recentes indicam que a perda de receitas potenciais seria de até R$ 120,3 bilhões — 43 vezes o orçamento aprovado para o Ministério do Meio Ambiente em 2019.

IHU – O governo alega que para evitar apropriações indevidas, foram estipulados critérios que determinam quem poderá se beneficiar pela MP. Entre eles, o reivindicante não pode ter outros imóveis rurais; a área deve estar inscrita no Cadastro Ambiental Rural – CAR e ser georreferenciada (identificada por coordenadas de satélite); não pode haver multas ou embargos ambientais sobre a área, que tampouco pode ser objeto de disputas registradas na Ouvidoria Agrária Nacional; o reivindicante deve estar realizando atividades agropecuárias no território; o reivindicante não pode manter trabalhadores em condições análogas às de escravos. Esses critérios são garantias suficientes para que essas terras sejam apropriadas?

P. M – Certamente são boas medidas, mas insuficientes. Ter CAR, por exemplo, não garante que a posse da terra é de boa-fé. O CAR é declaratório. Posso registrar um CAR no sistema do governo em algum lugar e dizer que aquela propriedade declarada é minha. É fundamental que este CAR seja validado. Isto é previsto no Código Florestal, mas a validação através do sistema oficial não avançou. Os mecanismos de salvaguardas da MP para evitar a regularização de grileiro são, na verdade, frágeis.

No seu artigo 13, por exemplo, a MP estabelece a possibilidade de uma regularização mediante a “juntada de documentos” e que é possível ainda dispensar vistoria do imóvel mediante a mera declaração do requerente. Ou seja, não há necessidade de documentos comprobatórios. Além disso, a área pode não ter sido embargada ou multada exatamente porque o poder público não atuou, não foi lá e multou, fiscalizou. Ou seja, a omissão do governo pode premiar aquele que não foi multado, com facilidades para obtenção do título da terra.

IHU – O governo Temer também editou a Medida Provisória 759, que flexibilizava os critérios para a concessão de áreas públicas na Amazônia, ocupadas até 2014. Os críticos dizem que iniciativas como a do governo atual e a do governo Temer têm origem na MP 458, que criou o Programa Terra Legal, no governo Lula. Que relações existem entre essas MPs e o Programa Terra Legal?

P. M – Em 2009, o então governo de Lula editou a MP Provisória 458, a qual deu origem ao Programa Terra Legal. O Programa visava fornecer as condições para que a Lei nº. 11.952 de 2009 fosse regulamentada. Essa lei tinha como objetivo a destinação e a regularização fundiária das terras públicas federais na Amazônia Legal. Em 2017, já no governo Temer, foi editada a MP 759 que, como a MP 910, foi batizada de MP da grilagem. A iniciativa flexibilizava os critérios para a concessão de áreas públicas na Amazônia ocupadas até 2014. Assim, tanto a MP 759 como a 910 estão temporalmente ligadas.

Importante dizer que a MP do Temer não beneficiava quem desmatou ilegalmente depois do prazo limite para consolidação de desmatamentos estabelecido pelo Código Florestal que era julho de 2008. Essa é uma grande diferença. A MP nº. 910/2019, foi muito além dos limites da própria Lei nº. 13.465/2017 (cujo conteúdo já facilitava, consideravelmente, a grilagem de terras amazônicas, se comparado ao texto original da Lei nº. 11.952/2009), e estabelece, agora, a possibilidade de legalização de grilagem (por alienação) para ocupações de apenas um ano, lapso temporal muito menor do que o anterior, de cinco anos, e conta tal período até 10 de dezembro de 2019.

IHU – O que essas iniciativas revelam sobre o modo como o Estado brasileiro trata o uso ilegal de terras da União?

P. M – Em geral, as terras públicas, em especial aquelas na Amazônia, são vistas como terras de ninguém (ou sem lei). Algo que precisa ou pode ser ocupado sem maiores problemas. Esquece-se que são patrimônio dos contribuintes, pois são públicas. Não cuidar bem deste patrimônio é algo que não deveria ser tolerado pela sociedade. O que assistimos hoje é o crescente aumento da dilapidação deste patrimônio. Sua destruição nunca foi tão grande. Prova disso é o aumento expressivo do desmate em florestas públicas não destinadas. Aquelas florestas da União ainda não alocadas numa categoria fundiária, como determina a lei de Gestão de Florestas Públicas de 2006.

As terras públicas precisam ser vistas pelo governo e pela sociedade como a praça de nossa cidade. Imagine a situação em que alguém cercasse parte da praça central e colocasse uma placa de vende-se. Ou que o prefeito fosse lá e regularizasse aquela posse, cobrando o mínimo pela área tomada ilegalmente, transformando-a em área privada? As cidades estão cheias de atos de grilagem, geralmente longe das praças centrais. Mas a visão da praça sendo tomada ilegalmente é algo que precisa permear a moral do governo e da sociedade.

IHU – Além da concessão das terras para grileiros, quais são as demais implicações da MP 910?

P. M – É muito importante que se atente para o fato de que a MP 910 abre possibilidade para a regularização da posse em terras públicas com desmatamento até dezembro de 2018, quando comprovado o período da ocupação atual há, no mínimo, um ano anterior à data de entrada em vigor da MP. Configurado este ponto, o desastre ambiental e social, em particular na Amazônia, estaria instalado. Além disso, a MP naturalmente gera a expectativa e o sentimento generalizado de que o “crime compensa”.

Se quem ocupou e desmatou ilegalmente ganhou o título da terra, por que quem não desmatou não vai ganhar? Então merece também!? E aí o governo vai dar título também e vai ter que permitir legalmente mais 20% de desmatamento legal. Ou seja, nunca vamos sair do círculo vicioso do crime de grilagem+desmatamento. Alguém aí vai acreditar que a partir de agora tudo será sério e para valer, então vamos parar com a ocupação de terra pública e o desmatamento, pois acabou a promoção? O Black Friday de terras públicas na Amazônia acabou? Alguém vai acreditar ou vai apostar que ano que vem novamente haverá outra promoção?

IHU – Do ponto de vista legal, a MP 910 entra em conflito com outras leis ou códigos ambientais?

P. M – A MP estende a data de corte para conceder benefícios a quem tem posse irregular de terra pública de julho de 2008 para maio de 2014. Ou seja, dá mais seis anos de folga para quem, conscientemente, cometeu crime de grilagem, pois o desmatador ilegal já tinha conhecimento da lei (Código Florestal) que estabeleceu o corte para maio de 2008. Só isso já estabelece um conflito com o Código vigente. Além disso, ela permite que até quem desmatou até dezembro de 2019 possa pedir e ter direito à regularização desde que entre no Programa de Regularização Ambiental – PRA rural. Aí está uma grande contradição, pois quem desmatou ilegalmente após julho de 2008 não pode entrar no PRA, que existe para quem desmatou ilegalmente antes daquela data de 2008.

Paulo Moutinho é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre e doutor em Ecologia pela Unicamp. Atualmente é pesquisador sênior do Ipam e membro associado do ao The Woods Hole Research Center (WHRC), nos EUA.

Fonte: Instituto Humanitas Unisinos (IHU)